Kalina Paiva

15/03/2024 11h16

 

O AVESSO DA PELE

 

Vivemos em uma democracia, contudo, no Brasil atual, os ares de totalitarismo dão baforadas quentes em nossa cara, mascarados de conservadorismo. Mais alguém está com os sensores de calor ligados, percebendo isso?

Já faz umas semanas que estamos acompanhando os desdobramentos da censura à obra O avesso da pele, escrita pelo carioca radicado em Porto Alegre, Jeferson Tenório, professor e pesquisador. E antes de qualquer coisa, já deixo um aviso: essa conversa franca que terei com vocês, leitores e leitoras, contém pequenos trechos da obra.

Sou professora de literatura, uma arte cuja matéria-prima é palavra – não no sentido de dicionário. Tudo nessa arte aponta para possibilidades de sentido, com sonoridades intencionadas. Asseguro que não há neutralidade. (E quem é neutro nesse mundo?) Até porque escrever é materializar as percepções do autor sobre determinada sociedade – Refiro-me aqui aos que ficcionalizam aspectos históricos e sociais.

Quando o autor do livro escreve do seu lugar de fala, isto é, de quem é negro no Brasil e vivencia diariamente a violência e o racismo – como é o caso do Jeferson Tenório - a narrativa mete o dedo na ferida aberta da sociedade e se reveste de uma força desestabilizadora da moral pregada nos templos ou estampada nas redes sociais.

Já reparou que, nas redes, as pessoas são perfeitas, éticas, honestas e tudo o mais? Talvez por isso você e eu, reles mortais que cometem erros, nos sintamos como a voz lírica de Poema em linha reta, do Fernando Pessoa, que desabafa: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” Nessas horas, lembro da voz da minha mãe: “Você não é todo mundo!”. Dou risada e sigo.

Vamos ao ponto. O que incomodou uma diretora do Rio Grande do Sul e a levou a julgar a obra imprópria para crianças? Sabendo que ela assinou a ata que autoriza o recebimento da obra na escola, pergunto: Desinformação ou racismo? A obra não é infantil, mas indicada ao Ensino Médio, aprovada pelo PNLD 2021, mesmo ano em que o autor ganhou o prêmio Jabuti na categoria romance literário.

A crítica da gestora gaúcha, pautada em passagens recortadas e tiradas de contexto, especificamente as que falam sobre sexualidade e contêm palavrões como se a obra se resumisse a isso, virou uma bola de neve, foi abraçada por parlamentares de direita e extrema-direita no Paraná e o resultado foi um efeito cascata na tentativa de fazer esse romance virar pó: censura seguida de retirada dos livros das escolas. Paraná saiu na frente, servindo de modelo para Goiás e Mato Grosso do Sul que aderiram à censura.

Para esse grupo boicotador, o romance de Tenório é uma mosca na sopa. Como professora de literatura e pesquisadora – se é que meu diploma e anos de estudos valem alguma coisa para essa gente que promoveu a censura – enxergo esse livro como um corpo negro que renasce das cinzas. É como Marielle Franco cuja memória é a prova de balas e faz brotar novas flores para a chegada da primavera. Quer ver? Depois do boicote, na Amazon, O avesso da pele teve um aumento de 400% nas vendas (até agora).

O que não contaram à população brasileira, trarei em forma de recorte a partir de agora, a começar pelo teor do enredo: O avesso da pele tem como narrador Pedro, cujo pai foi assassinado numa desastrosa abordagem policial. Na contramão da truculência, esse narrador partilha conosco essa história trágica de forma poética e tocante, à medida que promove reflexões sobre a relação entre pai e filho. O pai assassinado era professor e, nesse resgate de memórias, o filho vai revelando as agruras do sistema educacional brasileiro.

Então, qual o motivo de boicotar uma obra que leva jovens a repensarem a relação com seus pais e aprenderem a lidar com a violência e o racismo, levando-os a superar, transcender? Penso que a raiz da censura não foi revelada, mas há sinais.

Nas duas primeiras páginas, sabemos que Pedro traz para nós um desenho do pai: um homem negro, professor de escola pública, vinculado a uma religião de matriz africana.

Folheie comigo. Na primeira página do livro, Pedro está dialogando com os objetos da sala como se presentificassem o seu pai: “E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer.” Quando o narrador expõe isso, o pai já tem falecido. Sendo assim, a fala-denúncia é metonímica, pois aquele pai morto representa a coletividade, os corpos negros eleitos como matáveis dentro de uma lógica da necropolítica.

Permitam-me uma digressão, pois ela tem muito a ver com esse momento do romance. Lembrei do filme “Dois Estranhos” (2020), cuja história se repete com o mesmo protagonista. Sempre começa com ele acordando na casa da namorada, levantando-se para trabalhar, mas, independentemente do que venha a fazer, termina morto em uma abordagem policial. O filme nos faz ter a sensação de estarmos presos num loop, uma tentativa da arte de nos convidar a calçar as sandálias do outro.

Na segunda página do romance, Pedro continua: “Lembro o dia em que você me disse que sua cabeça era de Ogum, e que isso era ter sorte, porque Ogum era o único orixá que sabia lidar com os abismos”. Assim, vemos um filho se constituir como sujeito, partindo da perscrutação dos passos do pai: “Há cadernos e papéis. Há pastas com provas e redações dos teus alunos. Teu caos me comove. [...] Os objetos serão o teu fantasma a me visitar”. Somos comovidos pela poeticidade com que essa narrativa vai caindo em nosso colo, presenteando-nos com tiradas intertextuais como essa última que partilhei aqui cuja relação com Hamlet fica evidente. Aliás, é um recurso que o autor usa bastante. Se você tiver repertório, reconhecerá as costuras. Se não tiver, entenderá o romance.

Ao longo da leitura, percebo que a censura aconteceu porque somos um país onde impera o racismo estrutural. O que incomodou essa gente não foram os palavrões. Quer ver? Noite na taverna, de Álvares de Azevedo – homem branco, advogado, pertencente a uma classe mais abastada –, um clássico da literatura, está na mesma lista do PNLD 2021 – só para constar, tínhamos um governo ultraconservador na época. A narrativa alvariana traz o encontro de cinco amigos numa taverna e eles estão bebendo muito, quando um deles tem a ideia de desafiar os demais a uma disputa: a de contar algo escabroso já vivenciado na vida. Um deles relata ter feito sexo com cadáver. Pelo visto, essa obra não afronta os valores desse mesmo grupo censurador.

A prova cabal do motivo da censura de O avesso da pele: o autor é negro, o enredo fala sobre dois corpos negros em seu dia a dia, a violência policial é mostrada nua e crua, a indiferença dos políticos para com a escola pública é escancarada na obra. Mas o problema são os (poucos) palavrões que a obra apresenta ou algumas situações tocadas pela sexualidade...

Vou deixar como arremate dessa conversa um trecho do Poema em Linha Reta. Lá pelas tantas, Fernando Pessoa escreve: “Quem me dera ouvir de alguém a voz humana / Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia”. Jeferson Tenório faz isso muito bem, por isso ele PRECISA permanecer nos projetos de leitura das escolas. É um romance que a sociedade precisa engolir como um remédio amargo, por ser necessário para curar a doença do racismo na sociedade brasileira.

 


*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).