Kalina Paiva

23/12/2023 17h35 Um conto de natal* Kalina Paiva Essa não é uma história de pescador, mas uma história de passarinho: breve, enredada nos afetos, em palavras, feito ninho. Precisa ser assim para se partilhar um acontecimento que ressignifica uma tradição de família. Sempre recebíamos o verão, montando a árvore de natal. Abaixo da linha do Equador, as famílias costumam fazer isso no início de dezembro, porém, quando se faz parte de uma família de educadores, o final do ano letivo é um pouco diferente: primeiro acontece um acerto de contas com a entrega de diários escolares, depois vem a montagem da árvore. O ano tinha sido difícil para nós. Enfrentamos todas as estações, do frio ao calor, suportando as vicissitudes (inevitáveis) da vida e a inexorável força do tempo, porque tudo vale a pena quando se tem a promessa da primavera. É por causa do florescer que arranjamos força nos momentos mais delicados. Eu tinha começado a montagem da árvore com a mamãe. Não sei se pelo cansaço ou pela saudade, mas estávamos mecanicamente encaixando as peças, sem muito dialogar. Era o primeiro natal sem vovô. Quando vi que o silêncio estava mais presente na sala do que os nossos diálogos, propus a ela: “Vamos dormir, mãe. Amanhã, continuamos.” Ela acenou com a cabeça e se recolheu. No dia seguinte, confesso que levantei cedo, mas com muita vontade de permanecer na cama. Pensar que eu tinha deixado a tarefa pela metade na noite anterior não me dava coragem de pular da cama com a animação de quem está prestes a viajar para o lugar preferido. A procrastinação é a mãe de todos os males. Ainda de pijama, desci as escadas e fui direto olhar a árvore deixada no centro da sala. Percebi uns gravetos, uns fios soltos, umas folhas de textura diferente misturados ao artefato natalino. Comecei os trabalhos naquele momento com uma pequena faxina. Mamãe se aproximou, ajudando-me a retirar os corpos estranhos atados à estrutura que havíamos deixado montada, preparando-a para receber o passaredo. Mamãe era fascinada por pássaros, sobretudo corujas, por isso, entre os enfeites natalinos que estávamos prestes a pendurar, tínhamos não só as guardiãs da noite, como também beija-flor, noivinha-branca, galo-de-campina, asa-branca, graúna, entre outras aves que tornavam a árvore de natal um ninho. Mal terminei de separar os passarinhos, um tico-tico entrou voando pela janela, deu um rasante e foi para o topo da árvore natalina. Um misto de surpresa e encantamento tomou conta de nós. Todo o silêncio que preenchia o vão da sala foi quebrado com o canto da pequena avezinha que montou guarda no pequeno ninho, artisticamente arquitetado e já instalado no topo. O canto do tico-tico parecia comunicar que aquela era a sua casa. Entendemos e continuamos com a decoração sem mexer naquela pequena morada. Só então nos demos conta de que o presépio daquele natal estava diferente: em sua simplicidade, uma ave estava pousada no dormitório improvisado sobre o qual ela repousou os ovos. Decidimos deixar a janela da sala aberta para que ela pudesse voar em liberdade, indo e vindo para cuidar dos futuros filhotes. De tantas lições que a vida pode nos dar, aprendemos tanto com aquela avezinha. Uma delas, que o nosso ninho é temporário, mas enquanto estivermos nele, faremos valer a pena. Choramos abraçadas eu e mamãe. ... *Esse conto de natal se baseou em uma história real ocorrida em minha cidade. ________________________ Sobre mim: Kalina Paiva, professora, pesquisadora, escritora e produtora cultural. Natural de Natal-RN, é professora do IFRN, pesquisadora em Literatura Comparada e mídias e escritora de poesia e contos. Líder do Núcleo de Pesquisa em Ensino, Linguagens, Literatura e Mídias (NUPELLM) do IFRN e membro do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-grandenses. Membro da União Brasileira dos Escritores - Seção Rio Grande do Norte (UBE/RN), da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA), do Mulherio das Letras Nísia Floresta, e da Associação Literária e Artística de Mulheres Potiguares (ALAMP); Coordenadora de Letras e Literatura do Movimenta Mulheres RN.

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