Kalina Paiva

26/11/2023 21h08

 

Uma joia potiguar na tradução

 

Entrevista com Bruna Dantas Lobato, tradutora de “A Palavra que resta”, de Stênio Gardel.

Aos 32 anos de idade, a potiguar Bruna Dantas Lobato já acumula prêmios significativos pelo trabalho que desenvolve. Ela foi a tradutora do romance A Palavra que Resta, do cearense Stênio Gardel, que arrematou o National Book Award, prêmio literário mais importante dos Estados Unidos da América, na categoria Literatura Traduzida. Foi a responsável pela tradução de Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu, trabalho que lhe rendeu a indicação ao PEN Translation Prize; e pela obra O avesso da pele, de Jeferson Tenório, ganhando o English PEN Translates Award.

Bruna Dantas é natural de Natal/RN e veio ao mundo em 11 de junho de 1991. Ex-aluna do IFRN, concluiu a educação básica em 2010. Nos anos finais do ensino médio, ainda no Brasil, foi selecionada para fazer o intercâmbio em Tulsa, Oklahoma, após participar do Programa Jovens Embaixadores, uma iniciativa de responsabilidade da Embaixada dos EUA.

Atualmente, está radicada em St. Louis/EUA. É mestra em criação literária pela New York University, mestra em tradução literária pela University of Iowa e bacharela em Literatura Comparada pela Bennington College, onde será professora visitante em 2024.

Além de tradutora, é escritora e romancista. Seu primeiro romance, Blue Light Hours (ainda sem título em português), será lançado em outubro de 2024 pela Companhia das Letras e pela Grove Atlantic nos EUA. Possui contos publicados em várias revistas internacionais, a exemplo: The New Yorker, A Public Space, The Common e Guernica.

ENTREVISTA

[Kalina Paiva] Saudações, Bruna! Nas páginas do Google, em sites e blogs, há currículos acadêmicos e literários disponíveis a seu respeito. Em sua rede social, parece que estamos diante de uma pessoa reservada que ama o universo literário. Gostaria que você falasse um pouco de si para os leitores, sobre as coisas de que mais gosta, entre o caos da cidade e os ventos do cotidiano. Quem é Bruna Dantas Lobato?

[Bruna Dantas Lobato] Kalina, obrigada pela linda apresentação. Sempre fui uma leitora, muito antes de ser escritora. Preciso de tempo fora do ruído das redes sociais para poder focar no silêncio da literatura, para ouvir e pensar nas verdades mais difíceis. Viajo muito a trabalho e aproveito para ver amigos, sair, andar por aí. Mas, quando estou em casa, gosto de passar tempo com a minha família e minha coelhinha de estimação, ou lendo e escrevendo. Um dia ideal para mim envolve bolo, café, e um livro bom na minha varanda.

[Kalina Paiva] No Brasil, sobretudo em solo potiguar, recebemos com alegria e entusiasmo o resultado doNational Book Award 2023, ao sabermos que dois nordestinos venceram o prêmio de literatura mais importante dos EUA. Conta um pouco sobre a sensação de receber esse reconhecimento pelo seu trabalho.

[Bruna Dantas Lobato] Ainda estou muito surpresa porque é tão difícil conseguir reconhecimento para a produção cultural do Nordeste, mesmo no Brasil. Mas, aos poucos,estamos chegando lá. O Stênio Gardel merece muito toda a atenção e estou feliz de poder representar tradutores, que fazem tanto pela literatura, mas tão raramente dividem o holofote com seus autores. E como imigrante nos Estados Unidos, também tenho orgulho de poder mostrar a qualidade do nosso trabalho por aqui.

[Kalina Paiva] “A palavra que resta” é um romance tocante que traz a história do sertanejo Raimundo, um homem que, aos 71 anos, decide aprender a ler e escrever com objetivo de ler a carta – guardada durante quase uma vida inteira – que Cícerodeixa para ele. Por trás do enredo, temos um mundo figurativo que revela exclusão, pobreza, preconceito, entre outros temas atuais no que diz respeito à existência de um ser, de sua identidade e sua relação com a sociedade que o cerca. Sua mãe é paraibana e você, norte-rio-grandense.Em algum momento da primeira leitura, você chegou a recordar algo de suas vivências no Nordeste?Como você recepcionou a obra?

[Bruna Dantas Lobato] Sim, vários detalhes da história me lembraram de casa e influenciaram minha escolha deste livro. Tem uma enchente nos primeiros capítulos, por exemplo, que me emocionou muito. Quando eu era criança, a nossa rua alagava todo ano e eu ajudava a minha mãe a colocar a geladeira em cima da mesa para a água não queimar o motor, do mesmo jeito que a família de Raimundo tenta salvar uma máquina de costura. Foi muito especial para mim poder captara emoção dessa experiência no livro, tão diferente da imagem de seca no Nordeste que sempre vejo na mídia.

[Kalina Paiva] Sabendo que tanto você quanto Stênio Gardel são nordestinos, ainda que de estados brasileiros diferentes com variações regionais distintas, o fato de “A palavra que resta” ser ambientada no sertão facilitou o seu trabalho de tradução? Gostaria que você falasse um pouco qual a maior dificuldade para se manter o estilo do autor do texto original, ou mesmo transpor a ideia original para outra cultura.

[Bruna Dantas Lobato] Sim, não acho que eu teria conseguido traduzir do mesmo jeito se eu não conhecesse a linguagem e tradução literária do Nordeste como conheço. Quando era criança, passava férias no interior do Ceará, onde também tenho parentes, além de ter passado bastante tempo em várias partes do Rio Grande do Norte e Paraíba. Tenho uma familiaridade com o tom e estilo da fala nordestina de um jeito que nunca cheguei a ter com o português que escutamos no Jornal Nacional. A meu ver, a fala nordestina é esperta e criativa, com um lirismo e senso de humor únicos, e tive cuidado para não empobrecer essa riqueza. Já vi traduções para o inglês que priorizam a estranheza do nosso sotaque, que fazem tudo soar antiquado e engessado, e essa não era minha intenção. Para mim, a prioridade era a complexidade emocional da linguagem dos personagens, a criatividade, o ritmo, o tom e cadência, mais do que a diferença e estranheza do nordestino por si só. Passei muito tempo lendo o português e o inglês em voz alta, comparando o ritmo, até achar que estavam parecidos o suficiente.

[Kalina Paiva] O cearense Stênio Gardel desbancou escritores experientes como Pilar Quintana, Fernanda Melchor, David Diop, Mohamed Mbougar Sarr, que estavam concorrendo ao prêmio. Você acredita que a abordagem das consequências do preconceito e também da exclusão social no romance foram fatores de importância para a obra ter sido a escolhida?

[Bruna Dantas Lobato] É possível, apesar de vários dos outros livros também falarem de preconceitos muito bem também, inclusive de gênero. Talvez o principal diferencial do romance do Stênio seja como aborda a linguagem e literatura: a palavra escrita é o que salva o protagonista, o amor pela leitura. “(...) a letra era para menino que não precisava encher o próprio prato”, o pai de Raimundo fala para ele bem na primeira página do livro. O que o Stênio provou é que a letra é para todo mundo.

[Kalina Paiva] Entre os autores de língua portuguesa com mais títulos traduzidos, Clarice Lispector é a escritora brasileira mais traduzida no mundo (113). Aliás, ocupa o nono lugar em um ranking só de homens, sendo a única mulher da lista: Saramago (534), Jorge Amado (421), Fernando Pessoas (374). Quando o assunto é internacionalização da literatura brasileira, o que você acha que falta para existir equidade de gênero nesse ranking?

[Bruna Dantas Lobato] Falta muita coisa, desde as mulheres serem mais incentivadas a seguirem seus estudos até a equidade na divisão de tarefas domésticas. É difícil pensar em arte quando somos obrigadas a viver em condição subalterna no dia a dia e o Brasil está muito atrás de outros países nessa questão. Como tradutores e editores de literatura internacional, o que temos que fazer é levarmos em conta essas dificuldades e valorizarmos mais a literatura das mulheres, impulsionando as autoras que não recebem a devida atenção.

[Kalina Paiva] Leitores conhecem o seu trabalho de tradução. Vamos falar um pouco sobre sua experiência como escritora, contista. Suas produções estão todas em inglês. Você pensa em reunir seus contos e publicá-los no Brasil?

[Bruna Dantas Lobato] Escrever em inglês não foi uma escolha minha exatamente. Foi uma consequência da minha formação acadêmica nos EUA, da minha vida de leitora e escritora aqui, da falta de oportunidades similares no Brasil. Gostaria muito de poder escrever algo em português algum dia, mas,por enquanto, o meu plano é publicar no Brasil o que escrevi em inglês. Estou agora traduzindo meu romance de estreia para a Companhia das Letras, que vai sair simultaneamente no Brasil e nos EUA, em outubro de 2024, e está sendo mais difícil do que esperava. Mas está indo e mal posso esperar para ir ao Brasil, inclusive a Natal, para o lançamento. Quem sabe esse processo vai me ensinar o que preciso aprender para escrever mais em português algum dia.

[Kalina Paiva] Escritores costumam revelar em entrevistas, biografias, autores que serviram de referência para a sua escrita. Saramago confessou que Kafka o inspirava. Mia Couto mencionou Guimarães Rosa como uma voz brasileira importante para a composição do próprio estilo. Quais vozes literárias inspiraram o seu estilo? Relacionado a isso, fale também sobre o seu processo criativo.

[Bruna Dantas Lobato] Todos os autores que já traduzi me influenciaram muito, principalmente Caio Fernando Abreu e Stênio Gardel. Em inglês, os romances da Jamaica Kincaid, Sigrid Nunez e Jean Rhys me ensinaram muito sobre a linguagem e a condição da mulher imigrante. Meu livro não existiria sem os delas.

[Kalina Paiva] Sua estreia no gênero romance está prevista para outubro de 2024, data escolhida para ser lançado no BrasilBlue Light Hours.Fala um pouco a respeito, mencionando quais perspectivas você tem com esse novo trabalho.

[Bruna Dantas Lobato] O romance é sobre uma mãe no Nordeste [do Brasil] e uma filha nos EUA se comunicando à distância pela internet—a luz azul do título em inglês vem do brilho da tela, sempre iluminando o rosto delas. Procurei por anos, sem sucesso algum,um livro que retratasse uma experiência de imigração como a minha e de vários dos meus amigos, e também um laço profundo entre mãe e filha. Meu desejo é que o livro mostre a realidade da vida entre dois países de um jeito novo.

[Kalina Paiva] Para encerrar, que mensagem você gostaria de deixar às escritoras brasileiras?

[Bruna Dantas Lobato] Continuem escrevendo, mesmo entre os empecilhos, mesmo que os outros não valorizem, mesmo que o reconhecimento demore a vir. O objetivo da escrita não é agradar, ou falar bonito, ou nos dar prestígio: o objetivo é contar a nossa verdade.

Instagram da tradutora:

@bdantaslobato

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Sobre a entrevistadora

Kalina Paiva, professora, pesquisadora, escritora e produtora cultural.

Natural de Natal-RN, sou professora do IFRN, pesquisadora em Literatura Comparada e mídias e escritora de poesia e contos. Líder do Núcleo de Pesquisa em Ensino, Linguagens, Literatura e Mídias (NUPELLM) do IFRN e membro do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-grandenses. Membro da União Brasileira dos Escritores - Seção Rio Grande do Norte (UBE/RN), da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA), do Mulherio das Letras Nísia Floresta, e da Associação Literária e Artística de Mulheres Potiguares (ALAMP); Coordenadora de Letras e Literatura do Movimenta Mulheres RN.

 *ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR.                                                                                       


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