Bia Crispim

19/05/2023 07h59

 

Aguardando...

 

Um dia desses estava lendo uma crônica de João do Rio intitulada de “A pressa de acabar”, uma crônica do começo do século passado, da Belle Époque do Rio de Janeiro que não conhecemos, mas ouvimos falar. E ela me despertou pra duas questões acerca da nossa relação com o tempo: nossa escravização e nossa ansiedade.

Em um determinado trecho dessa crônica inteligentíssima, o autor diz: “Em tudo, essa estranha pressa de acabar se ostenta como a marca do século. Não há mais livros definitivos, quadros destinados a não morrer, ideias imortais, amores que se queiram assemelhar ao símbolo de Philemon e Baucis. Trabalha-se muito mais, pensa-se muito mais, ama-se mesmo muito mais, apenas sem fazer a digestão e sem ter tempo de a fazer. Antigamente as horas eram entidades que os homens conheciam imperfeitamente. Calcular a passagem das horas era tão complicado como calcular a passagem dos dias. Inventavam-se relógios de todos os moldes e formas.” Até que essas máquinas de contar o tempo nos escravizaram.

Impuseram além da contagem, a necessidade de preenchimento desse tempo, como se tudo fosse efêmero demais, mas ao mesmo tempo, necessário demais, imprescindível. Passamos a viver em um processo de instantaneidade para as tarefas mais simples, para as coisas mais cotidianas. Produtividade? Reflexo do capitalismo selvagem? Ou a nossa impossibilidade de não mais ocuparmos nosso tempo com a contemplação e o ritualístico que habitava nossas ações?

E o que isso nos acarretou? Diz João do Rio que “Nós somos uma delirante sucessão de fitas cinematográficas. Em meia hora de sessão tem-se um espetáculo multiforme e assustador cujo título geral é: — Precisamos acabar depressa. [...] O homem de agora é como a multidão: ativo e imediato. Não pensa, faz; não pergunta, obra; não reflete, julga.” E como temos feito errado, executado de qualquer jeito e julgado ao nosso bel-prazer.

Diga-se de passagem, que João escreveu isso há mais de 100 anos. Ficaria louco se nos visse agora. Uma multidão de pessoas ansiosas e completamente descontroladas quanto ao seu tempo. Sempre aguardando, sempre em espera, sempre em estado de alerta, adoecidas e, muitas vezes, frustradas.

É isso que temos: O tempo, o relógio, nossa escravização e nosso adoecimento. O século XX já apontava para esse drama moderno, sobre esse nosso “desenfreamento”, sobre esses nossos imensos vazios...

Não tempos tempo suficiente para dar conta do que a nossa ansiedade, nossa instantaneidade e nossa ânsia de viver e de alcançar nos impõem. Vivemos de verdade ou tudo é fake? Ou seguimos uma sequência desembestada de fatos sem controle e posamos para fotos e perfis de Instagram par dar uma de donos de nossas realidades.

Ah, se pudéssemos viver “sem o atropelamento da contemplação” como diz outro João, o Gilberto Noll. Se pudéssemos viver sem essas ânsias, sem esse relógio escravizador e sem essa sensação de que estamos sempre aguardando, quando muitas vezes, tudo já está posto para sermos plenos/as/es. Para sermos humanamente suficientes a nós mesmos/as/es. Para sermos capazes de viver sem essa pressa de acabar.

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).


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