Bia Crispim

21/10/2022 10h11

 

AS RAINHAS DE COPAS

 

Faz duas semanas que tento publicar a crônica que fiz em homenagem ao dia dos/as professores/as (Espero publicá-la ainda esse mês, afinal, ainda estamos em outubro!), mas outras situações que não precisam ser homenageadas, mas que precisam ser refletidas, vieram à tona e prenderam minha atenção e me estimularam a escrever sobre.

O que me estarrece e me faz adiar a ode à docência que escrevi foi um episódio que, se não fosse real, teria sido tirado de um filme de terror, tipo Jogos Mortais. E que, se não fosse tão cruel, poderia até ser tomada apenas como a vontade de arrogância e poder da Rainha de Copas de Alice e seu histérico e icônico: “Cortem a cabeça!”

Porém, a questão é séria, além de atroz, violenta, desumana e inadmissível. Uma jovem Travesti de 15 anos foi morta e teve sua cabeça e seu dedo mindinho decapitados e removidos do local do crime. O corpo sem cabeça foi encontrado nessa última sexta-feira (14/10) na Zona Norte de Natal/RN.

Se a brutalidade do crime choca, o que me estarrece é o descaso, a falta de mobilização e indignação social, além do desrespeito com que esse caso, esse corpo e esse SER HUMANO são tratados. “Ah, mas era só uma Travesti que se prostituía.” “Devia até está envolvida com roubo e drogas!”

NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOO!!! Isso não autoriza ninguém a tirar a vida do outro! Ser Travesti, se prostituir, se drogar, seja lá o que se utilize como desculpa, como motivo para se cometer esse crime bárbaro de  matar e decapitar não se sustenta, não tem valia, não pode ser aceito. Essa Travesti era uma criança! Uma pessoa em condição de vulnerabilidade social, emocional, familiar, educacional... Era uma pessoa jovem que, pela sua identidade e expressão de gênero foi interrompida.

E o mais doído (porque há sempre um mais) é que assassinar não basta, né!? É preciso arrancar partes. É preciso fazer sofrer, mesmo que já esteja morta! É preciso fazer em pedacinhos. É preciso deixar o “recado” de que nossas existências não valem nada. Que com nossos corpos, vivos ou mortos, se pode fazer o que quiser.

O portal de notícias G1 publicou em duas matérias a que tive acesso que “O corpo foi liberado para sepultamento, mas seguia na sede do instituto até a manhã desta quarta-feira (19). A cabeça da vítima ainda não tinha sido encontrada até a última atualização desta matéria”; e que “Um servidor que pediu para ter a identidade preservada afirmou ao g1 que a família da vítima, que mora em Pernambuco, assinou uma procuração para que o corpo da travesti seja sepultado em São Gonçalo do Amarante, onde ela estava morando”. E isso me impacta novamente como um soco no estômago...

Além de o corpo ser sepultado sem cabeça, o que por si só é uma imagem de tirar o sono de qualquer pessoa, sobretudo se ela for Trans/Travesti, sua família demonstra não fazer questão alguma de sepultá-lo. Quem é a Travesti na família brasileira, de uma maneira geral? Aquele ente que deixa de existir por que passa a existir. Entende!? E se ela é tão descartável assim para sua própria família, imagine o que ela representa para a sociedade como um todo?! NADA! NINGUÉM! E, portanto, passível de ser tratada como lixo, coisa, descarte.

Esse episódio hediondo ficará por isso mesmo. A vítima será a culpada e “Bem feito! Quem mandou ser desse jeito!”. Digo isso porque, segundo o mesmo portal de notícias já citado, um suspeito foi detido e assumiu o assassinato, mas... “Apesar de confessar o crime, o homem responderá em liberdade, já que não foi detido em flagrante e não há nenhum mandado de prisão contra ele.” E alguém vai expedir esse mandato?! Provavelmente, não! Afinal, ele fez um bem para a sociedade, não é mesmo?!

Fico imaginando que a condenação à rejeição, à precarização, à violência e violação, ao desprezo e ao preconceito não sejam suficientes para uma Travesti em vida. Esse combo deve continuar perpetuando-se sobre ela para além do corpo vivo, para além da consciência, para além da vida concreta e cruel na qual a maioria das pessoas Trans/Travestis desse país estão imersas... “E que nem sua alma seja capaz de descansar em paz! Amém!”

Desde sexta que não estou bem. E quem estaria?! Vendo essa violência e essa violação de direitos de pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ em escalada, sendo uma pessoa dessa comunidade?! Constatando que, em nome de uma santidade, os ditos santos estão se tornando verdadeiros demônios carregados de ira, de ódio e de falta de amor ao próximo. O que estamos presenciando é uma multiplicação da Rainha de Copas e o que ecoa sobre nossas existências é a terrível e real sentença: “Cortem a cabeça!”

 

 

 


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