Bia Crispim

15/07/2022 00h00

 

DISCURSO DE QUEM ESCREVINHA

 

(Esse discurso foi proferido ontem, 14 de junho, em uma noite de autógrafos realizada pela Secretaria Especial de Cultura da Prefeitura Municipal de Currais Novos em alusão às festividades da padroeira Sant’Ana. Após os agradecimentos e os cumprimentos às autoridades, às pessoas presentes e às/aos demais colegas escritoras/es.)

 

Boa noite!

 

Escrever é um ato solitário, dizem. Mas é um ato solitário povoado de gentes, de vozes, de memórias, de ditos, de emoções e sentimentos nossos, que escrevemos, e dos outros.

O escritor e ensaísta cubano, Severo Sarduy, diz em seu livro Cobra (1975) que “A escritura é a arte da elipse”; “[..]é a arte da digressão”; “[..]é a arte de recriar a realidade”; “[..]é a arte de restituir a história”; “[..]é a arte de decompor uma ordem e compor uma desordem”; “[..]é a arte do remendo.”

 

Escrever é acima de tudo arte. Arte de escrevinhar.

 

Através dela revelamos tudo ou parte de. Ocultamos fatos, ou os escancaramos; convidamos a um mergulho imperfeito na nossa humanidade, a pessoa que lê, cuja experiência única e intrasferível jamais saberemos.

 

É por ela que nossas impressões e visões de mundo se mostram (ou se escondem?). E assim dialogamos, esbravejamos, nos irritamos, concordamos, discordamos, expomos nossas reflexões e/ou fazemos refletir, às vezes.

 

Reconstruímos ou construímos épocas e cenários; ressuscitamos ou damos vida a seres (humanos ou não); ofertamos realidades novas ou velhas, possíveis, impossíveis incabíveis, encantadas, fantásticas, aterrorizantes, indesejáveis, inquietantes; lugares onde os sonhos moram, onde os pesadelos nos tiram o sono, onde só a arte é capaz de chegar.

 

Devolvemos ao homem o que é do homem: suas histórias, suas narrativas, suas lembranças, suas dores, suas vitórias. Imortalizamos os fatos (reais ou ficcionais; como foram, ou como desejávamos que fossem): batalhas, amores perdidos ou conquistados, histórias de Trancoso, causos de assombração, histórias inacreditáveis ou tão ordinárias que parecem mesmo serem as de cada um de nós.

 

Compomos ordens, instalamos o caos, provocamos o leitor a ver, a sentir, a perceber, a se emocionar, a experimentar vidas outras, pessoas outras, lugares outros. Propomos uma viagem ou viagens fora das nossas bolhas, tiramos as pessoas (inclusive nós mesmos/as enquanto escrevemos) das nossas zonas de conforto, tocamos em feridas, sacudimos egos, álter egos e ids.

 

Remendamos. Como remendamos. Toda escritura é uma arte de remendos. A poesia, o conto, a crônica, o romance... São feitos de pequenos pedaços, de fragmentos (as próprias palavras são fragmentos). E feito joguinho de Lego ou colcha de fuxico ou de retalhos é que tecemos o verso, que desenvolvemos as frases, que damos forma ao que está dentro. Vomitamos retalhos de nós, pedaçarias do mundo, fraturas de tantos... Rede de pescar palavras e seus sentidos tantos: é isso escrever.

 

Hoje, tenho a honra de usar da minha escritura para falar em nome de tantos. De outras pessoas que também fazem do escrever um ofício ou um hobby. E, sobretudo, de Potiguares, de seridoenses, de currais-novenses (nascidos aqui ou adotados por essa gente). É uma honra, repito, saber que faço parte. Que apesar da ausência, me faço presente, me sinto pedaço, sinto pertença. Como escreveu José Bezerra Gomes o “Seridó - Casa Grande”, o Seridó é uma casa enorme, onde filhos, parentes, aderentes e agregados encontram pouso, um cafezinho e uma rede armada na varanda.

 

Sinto-me nesta rede, disfrutando do balanço, ouvindo causos/histórias na voz e no violão do meu saudoso pai, ou nas muitas histórias cantadas na mansa voz de minha mãe. Se escrevo, é porque os ouvi. A oralidade é mãe do escrever. E o sertanejo é um exímio contador de histórias, cantador de vidas e memórias. Como não se alimentar de tudo isso?

 

Peço, então, humildemente, a atenção para nós, escritoras e escritores Potiguares, seridoenses, currais-novenses. Nós existimos e somos férteis, pois a ancestralidade do narrar, do cantar corre em nossas veias. Pena que santo de casa não obre milagre, porque se assim o fizéssemos, viveríamos em estado de graça.

 

Somos muitas/os/es, somos frutíferas/os/es. Escrevemos de tudo um pouco, slams, cordéis, redondilhas, sextetos, sonetos, versos livres, nanocontos, microcontos, contos, causos, crônicas, manifestos, discursos, novelas, romances, quadrinhos, fanzines... Produzimos literatura de qualidade e de potência.

 

Deixamos marcas de nossa oralidade, de nossa linguagem, de nosso nordestinhês, do nosso modo de ver, sentir e interpretar o mundo. Damos vida a personagens tão nossos que não caberiam em lugar outro que não fosse entre as linhas do que escrevemos. Versamos vivências, saberes e sensibilidades que só quem tomou banho no Dourado ou no Pico, desbravou os Apertados, se embrenhou nos túneis da Brejuí, namorou no Cruzeiro, tocou a Pedra do Sino ou deu voltas e mais voltas na praça Cristo Rei depois de missa na Matriz de Sant’Ana é capaz de fazer.

 

Para encerrar esse pequeno discurso, eu clamo a todas as pessoas aqui presentes para ovacionar essa literatura tão rica, tão nossa; essa literatura do Sertão Potiguar, seridoense, currais-novense, tão abundante, diversa, criativa, sensível, provocadora e potente quanto qualquer uma outra escritura nascida nos grandes centros ou rincões desse imenso Brasil.

 

Viva a Literatura Potiguar! Viva a Literatura Currais-novense!

 

 

 

 

 


*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).