Bia Crispim

28/08/2020 00h05
Esvaziamento, Fé e Esperança
 
Nesse período de isolamento e incertezas, escrevi uma crônica sensível que trago para a coluna dessa semana.  Quero que ela sirva como ponto de partida para refletirmos sobre de que formas essa pandemia nos esvaziou de inúmeras maneiras, mas também para acreditarmos que essa é uma situação passageira e que a Arte, com todo o seu poder transformador; a Esperança, com toda sua força; e a Fé, que nos faz crer em um amanhã possível, possam nos preencher de Humanidade.
 
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DE VOLTA À PRAÇA 
 
– por Bia Crispim
 
Naquela encruzilhada, entre prédios antigos, está a praça, onde há tão pouco se via mesas com suas cadeiras ocupadas por risos, falatório, e brindes. Onde famílias jantavam, onde amigos celebravam um aniversário, um emprego novo. Onde algum solitário se afogava em suas mágoas ou amores naufragados. 
 
Na praça também havia crianças que brincavam com outras crianças e mulheres e homens que brincavam com crianças, como crianças. A vida era lúdica ali. Havia beijos, mãos dadas, artistas anônimos fazendo música, malabares, mágica. Mágico como o açúcar virando algodão doce, ou o carocinho do milho explodindo em pipoca. Tudo tinha vida, movimento, cheiro e sabor.
 
Havia gritos, gargalhadas explosivas, gestos, muitos gestos e pombos e velhinhos que nos bancos os alimentavam.
 
Agora não há pombos, não há velhos jogando migalhas. Não há mais migalhas, porque não há mais jantares ao ar livre. Não há mais crianças deixando suas pipocas caírem. Os pombos sabem... Não há mais como sobreviver ali. 
 
As crianças já não podem mais exercitar sua infância correndo na praça, nem os adultos podem ser crianças ao lado de suas crianças. A infância se fora. Os gestos tornaram-se contidos. Sem abraços, sem beijos, sem toque, as pessoas tornaram-se ilhas. E se reclusaram. 
 
A praça ficou deserta, as ruas ficaram desertas, os homens ficaram desertos. 
 
De suas ilhas os homens passaram a ver o mundo de forma diferente, descobriram o quão frágeis eram, são e sempre serão diante daquilo que lhes é desconhecido. 
Descobriram que cuidar do outro importa. Descobriram que a morte pode ser mais rápida, perversa e assustadora do que imaginavam.
Descobriram que não têm controle sobre nada.
 
Muitos dos velhinhos que alimentavam os pombos se foram. Algumas famílias não têm como sentar à mesa para comemorar, pois há uma ou duas cadeiras vazias. Há crianças que não voltarão àquela praça, nem pais, porque a praça trará seus sorrisos e brincadeiras de volta e isso dói.
 
O malabarista deu sua última pirueta. A música já não é mais executada, pois o instrumento jaz na calçada. E algum mágico, sumiu em sua cartola.
A praça, as ruas, as cidades, as pessoas... Encheram-se de vazios. 
 
Mas eis que, dentro dessa cena deserta um homem-ilha se move, de branco, sozinho, com um crucifixo ao peito, olhando para o nada, mas rezando para que toda a vida volte pr’ali.
 
Só ele e sua fé.
 
Fé que preenche os vazios de esperança. Fé que nos faz acreditar que há um Deus capaz de um dia, nos devolver os risos, os brindes, os jantares, as crianças e os pombos na praça, porque teremos a chance de ficarmos velhos e irmos pra lá, sentar nos bancos e alimentar os pombos que voltaram.
 

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