Bia Crispim

08/05/2020 00h03
 
A fantástica fábrica da escritura
 
Essa semana, eu tive a honra, a felicidade e o frio na barriga de saber que um livro de contos escrito por mim será publicado pela editora potiguar CJA. 
 
Honra por estar “parindo um filho” gerado nos recônditos confins do meu ser, honra por ser novamente pioneira (serei a primeira mulher trans a publicar um livro de literatura no estado), honra por fazer literatura, honra por mostrar que a educação e o acolhimento podem despontar oportunidades...
 
Quanto à felicidade, ela está ligada à satisfação pessoal, à alegria e ao choro compartilhado, sobretudo com minha mãe (minha grande fã e incentivadora), à realização pessoal de ter minhas histórias desengavetadas e compartilhadas com um público que eu ainda não conheço...
 
Já o frio na barriga, o nervosismo, ah, esse se deve ao gosto da aventura, do experimento de um novo sabor, da vivência inédita que essa notícia me provocou, se deve à dúvida de se o que eu produzi irá agradar ao meu público... (Que público? Como já disse, eu ainda o desconheço!) O que, de alguma forma, amedronta, como me amedrontou escrever uma coluna para esse jornal semanalmente. 
 
Escrever é uma das ações humanas mais intrigantes e desafiadoras que eu conheço. Através de palavras impressas, sem entonação, sem expressão facial, sem os gestos e outros signos que as acompanham, como o autor consegue, mesmo elas estando aparentemente “mortas” em seu estado de impressão, dar vida a ponto de permitir ao leitor criar, “junto” ou “a partir do/a” autor(a), as vozes, os gestos, as personas, a vida que delas, as palavras impressas, brotam?
 
Escrever é uma fábrica onde tudo, absolutamente tudo, pode ser revelado, exposto, criado, observado, analisado, materializado diante de quem escreve e de quem, mais tarde, lê.
Ato fantástico, fantasioso, às vezes sério, analítico e reflexivo, outras vezes, informativo ou argumentativo, mas sempre criativo, sempre apresentando universos de códigos cujo deciframento se dá pela fruição, pelo prazer que ela (a fruição) pode proporcionar, como afirma o estudioso Roland Barthes.
 
Poder ser uma funcionária d’A Fantástica Fábrica da Escritura me possibilita dar voz aos meus sonhos e devaneios, aos meus mundos internos, às minhas criações, aos meus medos, minhas vivências e meus devires; permite-me dar voz à comunidade LGBTQIA+, à comunidade trans, sobretudo das mulheres trans e travestis que se sintam por mim representadas; permite-me dar voz a movimentos sociais, ao discurso transfeminista interseccional, à educadora que sou há mais de 20 anos.
 
Escrever permite-me ser. 
 
Clarice Lispector, em seu livro, “Uma aprendizagem, ou, O livro dos prazeres”, através da personagem Lóri, diz: “...eu gosto de ver as pessoas sendo”.
 
Escrever me faz ser. Eu estou sendo quando escrevo. Eu me dou a chance de existir quando me transfiro para o texto. E como Lóri, eu estou gostando de me ver sendo. Sendo Bia Crispim, a professora, a ativista, a escritora, a colunista, a mulher... Conquistas que há algum tempo pareciam impossíveis para mim.
 
“Alice começava a pensar que bem poucas coisas eram realmente impossíveis”, disse Lewis Carroll; já eu, Bia Crispim, começo a acreditar que poucas coisas são realmente impossíveis neste mundo.
 

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