DENÚNCIA: mesmo sem RQE, médicos continuam atuando fora da sua área de especialidade; casos acontecem em diversos estados do Brasil, inclusive no Rio Grande do Norte

19/02/2024 11h36


DENÚNCIA: mesmo sem RQE, médicos continuam atuando fora da sua área de especialidade; casos acontecem em diversos estados do Brasil, inclusive no Rio Grande do Norte

Foto: Reprodução

 

Mesmo com as resoluções vigentes do Conselho Federal de Medicina (CFM) que regem as condutas e normas da atuação médica no Brasil, e por conseguintes suas respectivas atualizações, como por exemplo a Resolução n.º 2.162/18, que define sobre relação de especialidades e áreas de atuação médica, profissionais continuam atuando sem o Registro de Qualificação de Especialista (RQE), uma exigência estabelecida pela Código de Ética Médica, em seu artigo 117.

“Um médico sem RQE não pode se divulgar especialista, seja em publicidade comercial ou em documentos como atestados, carimbos e receituários”.

Apesar da obrigatoriedade do RQE, denúncias apontam que muitos médicos no Brasil continuam atuando e divulgando atendimentos e tratamentos fora da sua área de especialidade, inclusive muitos deles cometendo erros médicos.

Conselhos Regionais da área têm demonstrado preocupação com o crescente número de denúncias contra médicos sem o RQE, a exemplo do Cremers, que publicou matéria em seu site oficial alertando sobre os perigos e potenciais punições. Na publicação, o órgão provoca os diretores técnicos de saúde da região a se certificarem sobre a qualificação dos profissionais contratados.

No Rio Grande do Norte

A falta de fiscalização e uma atuação proeminente por parte dos Conselhos Regionais podem ser decisivas para o aumento de denúncias contra médicos que atuam sem o RQE.

No Rio Grande do Norte não é diferente. Nossa equipe recebeu denúncia de que o médico Gutembergh Nóbrega, especialista em Cirurgia Geral (RQE 2814) e Endoscopia (RQE 4999), divulga e oferece atendimento e tratamento como Proctologista.

De acordo com as informações apuradas, o médico além de ofertar o atendimento, ainda divulga ações que nada têm a ver com as suas áreas a fins, para as quais está legalmente habilitado a atuar. No perfil oficial no Instagram do Hospital Gastroprocto, estabelecimento de saúde o qual o dr. Gutembergh Nóbrega é o responsável técnico, é possível constatar a divulgação de conteúdo que destaca a especialidade de Proctologia, como sendo um dos serviços ofertados pelo local. Divulgações dessa natureza podem confundir o paciente, gerar dúvidas e induzir erroneamente a busca pelo serviço, como demostra a imagem abaixo.

A Resolução 1.974/11 do CFM que dispõe sobre o Manual de Publicidade Médica, em seu Art. 3º afirma que:

“É vedado ao médico: a) Anunciar, quando não especialista, que trata de sistemas orgânicos, órgãos ou doenças específicas, por induzir a confusão com divulgação de especialidade”.

Nossa equipe recebeu registros de gravação em que o atendimento por telefone, ligação e mensagens no WhatsApp, mostram que o Hospital Gastroprocto oferta consulta e tratamento, e que inclusive, o médico Gutembergh Nóbrega seria o “único proctologista a atender no local”. Além disso, um paciente registrou todo o processo de atendimento no local, ou seja, na sede da Gastroprocto, que comprova a veracidade dos fatos.

ASSISTA: https://youtu.be/p5KiID5Vcqc

 

Ao se pesquisar no Google por especialistas na área de proctologia em Natal, diversos anúncios mostram o médico como sendo proctologista, mesmo não possuindo RQE.

Além de tudo o que foi devidamente apurado pela reportagem, também verificamos que o médico Gutembergh Nóbrega, exatamente por divulgar através de publicidade em suas redes sociais, uma especialidade que não possui, tornou-se réu em Ação Civil Pública, deflagrada pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte, em trâmite na 11ª Vara Cível de Natal (Proc. Nº 0909989-39.2022.8.20.5001). Na ação, o MP cobra dano moral coletivo no valor de R$ 500 mil reais.

O respectivo médico também responde a outro processo na justiça potiguar (nº 0840134-41.2020.8.20.5001 1ª Vara Cível da Comarca de Natal), por danos morais e outros, que envolve erro médico cometido pelo médico Gutembergh Nóbrega, durante uma cirurgia para a retirada de um cisto sacrococcígeo.

Trata-se do paciente Matheus Fernandes de 28 anos, que na manhã seguinte ao procedimento, notou que o braço direito apresentava uma lesão. Ao questionar o médico quando o mesmo lhe deu alta médica, ele teria informado que o ferimento se tratava de uma queimadura ocasionada por um bisturi elétrico, utilizado durante a cirurgia.

 

 

Na ocasião, o médico Gutembergh Nóbrega teria reconhecido o erro e prescreveu uma pomada para a ferida.

O advogado do paciente, Ronny César, disse que o médico causou sérios danos ao seu cliente e que precisa ser juridicamente penalizado.

“É lamentável o que acontece nessa situação. O que sabemos é que o dr. Gutembergh da Silva Nóbrega é alvo de investigação pelo Ministério Público e não estava apto para a realização da cirurgia. Nesse sentido, prejudicou totalmente o paciente, e acarretou prejuízos e cicatrizes permanentes em sua vida. Peço que a justiça seja ágil e atue na melhor reparação para que casos assim não ocorram mais”, reforçou o advogado.

Fizemos contato com o hospital do médico Gutembergh Nóbrega e sua equipe no intuito de recebermos esclarecimentos sobre a denúncia e as informações reportadas na matéria, porém não obtivemos retorno algum.

A reportagem também fez contato com a assessoria de imprensa do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Norte (Cremern) para saber sobre a Comissão responsável por receber e investigar denúncias de ausência de RQE, sobre as possíveis punições legais aplicadas, mas não obtivemos nenhuma resposta.

Importagem ressaltar que a reportagem deixa o espaço aberto para possíveis esclarecimentos. 

Casos de repercussão nacional

Muitos casos continuam ocorrendo em diversos estados do Brasil, mesmo apesar da existência dos Conselhos Regionais de Medicina que tem, dentre outros preceitos, o de fiscalizar a atuação dos médicos, de forma a garantir que ela esteja de acordo com o Código de Ética da profissão. Diante de casos, que comprovadamente ferem a ética médica, o Conselho poderá julgar e suspender, ou até cassar o registro do profissional.

Segundo matéria jornalística publicada no Portal G1, em agosto de 2022, o médico Ricardo Bovo Junqueira, foi acusado por uma paciente de erro durante um procedimento para retirar o excesso de pele das pálpebras (blefaroplastia), em Franca (SP). Conforme a publicação, uma nota divulgada pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp), confirmou que o médico não possui registro de especialidade em Dermatologia, inscrito no e nem no Conselho Federal de Medicina (CFM).

Em consulta ao site Jusbrasil é possível testificar que o referido médico responde ação processual iniciada em 2023, por dano moral em virtude de erro médico. O Cremesp abriu uma sindicância para apurar o caso que tramita sob sigilo.

Os riscos da atuação não especializada culminam não apenas ao fato de ser considerada como exercício ilegal da profissão, mas principalmente sobre as graves consequências que podem ser ocasionadas, como erro médico, e até morte de paciente.

Caso Dani Li

Um caso recente que repercutiu nacionalmente foi o da cantora nortista Dani Li, de 42 anos, morta no dia 24 de janeiro de 2024, em decorrência de complicações provocadas por uma cirurgia estética (redução de mamas e lipoaspiração). O fato ocorreu na Fundação Hospitalar de Pinhais, em Curitiba (PR), e teve como responsável a médica Luciana de Freitas, que se identifica como Cirurgiã Plástica (RQE 9274).

A Polícia Civil do Paraná abriu inquérito para apurar a hipótese de imprudência e negligência médica. A família da cantora denuncia suposto erro médico.

Em nota, o CRM-PR informa que “instaurou procedimento sindicante para apurar denúncia veiculada nos meios de comunicação de possível desvio ético cometido pela referida médica. Como determina o Código de Processo Ético-Profissional, o trâmite ocorre sob sigilo, assegurando-se os requisitos de contraditório e ampla defesa”.

Como obter o RQE

O Registro de Qualificação de especialista (RQE) pode ser obtido ao término de uma residência médica, mediante o registro do título, na Comissão Nacional de Residência Médica, realizada pela Associação Médica Brasileira (AMB), ou após o médico ou médica ter sido aprovado (a) na prova de título. O registro deve ser regularmente inscrito no Conselho Regional de Medicina no estado onde o profissional atua.

Vale ressaltar que é sempre importante pesquisar sobre a idoneidade do especialista para o qual se busca atendimento. Qualquer pessoa pode pesquisar no site do CFM se o médico está com situação regular e as suas áreas de atuação.

Também é oportuno lembrar que o CFM possui um canal disponível para denúncias em sua página oficial.

Novas regras para publicidade médica no Brasil passam a vigorar em março

Em 2023, o CFM anunciou uma nova resolução com a flexibilização e modernização das regras para publicidade médica no Brasil, garantindo que todas as divulgações estejam de acordo com o que prega o Código de Ética e a legislação pertinente sobre o assunto. Trata-se da Resolução n.º 2336/2023 que foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) em 13 de setembro de 2023, entrará em vigor a partir do dia 11 de março de 2024.

Apesar de modernizar e flexibilizar algumas regras, outras continuam seguindo o que o que já é estabelecido, por exemplo, “para se anunciar como especialista, o médico deve informar seu RQE”.

Fonte: Marclene Oliveira, jornalista