Eva Potiguara

Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN. É escritora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus 2023 do MINC, na categoria Romance.

O CONGRESSO DA VELHA SENZALA

10/07/2025 11h23

 

Os coronéis ainda mandam. Eles não usam mais chicote de couro cru, mas emendam a Constituição com dedos sujos de injustiça colonial. Não plantam mais cana com pessoas escravizadas nos canaviais, mas negociam o futuro do povo em reuniões com empresários do agronegócio — entre um cafezinho importado e uma licitação obscena — sem dialogar com trabalhadores do campo, quilombolas e povos indígenas.

Sim, os herdeiros dos latifúndios continuam escrevendo a história com as mãos que herdaram do gado, da grilagem, da pólvora e da cruz. Agora vestem terno, falam em nome da família, da pátria e de um “deus domesticado” que abençoa lucros, mas silencia diante das chacinas no campo.

Em Brasília, o povo é uma ideia vaga, uma lembrança incômoda que aparece só de quatro em quatro anos com título de eleitor na mão. Depois disso, que fique na fila do SUS, no calor da sala de aula sem ventilador ou afundado até os joelhos na lama dos desastres ambientais. Afinal, para que serve o povo se não for para sustentar o Centrão e seus banquetes legislativos?

Nos últimos capítulos desta tragicomédia em curso, ficamos sabendo que querem aumentar o número de deputados. Porque, naturalmente, não bastam “513 almas iluminadas” para ignorar os clamores do país — é preciso mais gente para fazê-lo com eficiência e rapidez. É a lógica do excesso: mais políticos para menos direitos, mais fantasmas sanguessugas dos recursos públicos, enquanto se nega até o direito de respirar a quem vive do salário mínimo.

Lá, onde se vota com a lógica da casa-grande, recusaram a isenção do imposto de renda para quem vive com o básico. Arthur Lira — o grande maestro da marcha dos privilégios — segura com unhas e dentes o projeto de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco mil reais. Claro, não dá para abrir mão de dinheiro que poderia financiar novos jatinhos, lagostas ou emendas secretas. Porque o pobre que respire menos, sonhe menos e consuma menos. Que se cale, mas que pague para que o luxo dos poucos se mantenha firme, intocável e garantido.

E se não bastasse tanta injustiça social, 70 % dos deputados são contra o fim da escala 6×1. Afinal, que trabalhador ousaria sonhar com um domingo de descanso? O lazer é um luxo reservado aos “donos da terra e do tempo”. A classe operária que se vire — entre o cansaço e suas raras oportunidades de repouso. O importante é produzir para que o topo da pirâmide siga brindando com champanhe francesa. Domingo é só mais um dia de gerar riqueza para outros e, para comer, um prato raso de esperança.

E o meio ambiente? Eles querem enterrá-lo sob concreto e pasto. O “PL da Devastação” propõe matar rios, florestas e bichos com papel timbrado e cara de progresso. Eles não dizem “vamos destruir o Brasil”, mas o fazem com uma elegância legislativa que mata mais do que o machado.

Não à toa, as redes sociais fervem com termos como “Congresso Inimigo do Povo” e “Congresso da Mamata”. O povo acordou, grita, denuncia. Mas o Congresso? Finge que não é com ele. Vota sorrindo, enquanto vende o país em fatias no buffet neoliberal da elite.

Quem são eles? São os mesmos que, há séculos, expulsaram indígenas de suas terras, os mesmos que escravizaram corpos e apagaram saberes. São os que transformaram montanhas em crateras, florestas em carvão, terras e mares em poços de petróleo. São netos dos bandeirantes e filhos de donos de usina; tataranetos dos que dizimaram aldeias e agora querem derrubar licenças ambientais para erguer impérios de soja e pastagem em plena era digital; primos de donos de garimpo ilegal, irmãos de grileiros, amantes dos dólares internacionais que pagam o desmatamento do Cerrado, do Pantanal e da Amazônia.

Por isso, mais do que nunca, é hora de subir o tom. Nada de “respeitosamente discordo”. Agora é gritar: prendam os golpistas! Taxem os bilionários! Rasguem o teto de gastos! Libertem o Brasil da chantagem da elite!

Se ficarmos calados, seremos cúmplices. Se cruzarmos os braços, estaremos de joelhos. Que se levantem as vozes, os punhos, os corpos. Que voltem os atos nas ruas, os protestos nas praças, os tuitaços. Que se faça da indignação uma força coletiva capaz de virar o jogo.

Se este Congresso é inimigo do povo, é porque o povo é semente — e semente resiste ao fogo. Hoje nos chamam de radicais por querer justiça social, por exigir a taxação das grandes fortunas, o fim do orçamento secreto, por gritar contra os golpistas e vigaristas da bancada do boi, da bala e da bíblia.

Mas nós estamos vivos, lembramos e resistimos, pois viemos da raiz da terra, da memória da Jurema, do sopro dos encantados e das pedras dos quilombos. Nós, que lemos nas entrelinhas da injustiça, ouvimos os tambores dos nossos mortos sussurrando: “Não deixem que nos apaguem de novo. Não deixem matar nossa Mãe Terra.”

Então que se levantem os corpos, as palavras, os cantos; que as redes tremam, que as ruas se encham. Não aceitaremos mais ser governados por “herdeiros da casa-grande” que ainda pensam que a senzala é eterna. Somos a terra que retorna, o Brasil que levanta, a memória que ninguém apaga — e, se este Congresso é inimigo do povo, que o povo se torne o pesadelo dos seus dias de glória!


*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).