Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN. É escritora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus 2023 do MINC, na categoria Romance.
Há cadeiras que não são apenas assentos, mas sim lugares de fala, reivindicações de territórios roubados e reparações historicamente ignoradas. Há nomes que não apenas ocupam espaços — eles reparam dívidas e ausências históricas.
O nome de Eliane Potiguara, ao se apresentar para a cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras, não se configura apenas como a menção de uma autora. Ele ressurge como um marco de lucidez nacional e de justiça decolonial. É um passo coletivo na direção de tudo o que o Estado Brasileiro, de matriz ocidental e escravocrata, tenta, há séculos, silenciar. Isso porque a história oficial brasileira sempre foi escrita com tinta de esquecimento e segregação, gerando uma dívida com seus povos originários. Essa dívida não se paga com títulos, mas pode começar a ser reparada com gestos simbólicos. E nenhum gesto, neste momento, será mais forte do que eleger a primeira mulher indígena para a ABL. Não se trata de representatividade pela aparência, mas sim de ruptura histórica, de justiça literária e de urgência política.
Eliane Potiguara é escritora, educadora, mãe, mulher indígena da etnia Potiguara, descendente de uma ancestralidade expulsa à bala das próprias terras. Sua escrita não nasceu nos salões da elite — foi gerada na pele ferida da memória, e foi ela quem, aos sete anos, escrevia cartas para a avó. Desde então, nunca mais parou de escrever o que o Brasil precisava ouvir. Autora de obras como “Metade Cara, Metade Máscara”, Eliane não escreve para seguir os cânones da literatura clássica, mas para retomar e reerguer modos de sentir e de pensar discriminados, proibidos e rotulados como inferiores.
A sua tessitura escrita traz diversos territórios insurgentes: abriga, denuncia, consola e provoca. Sua voz pioneira na literatura indígena no Brasil evoca os povos originários que foram apagados das narrativas oficiais, dos cânones, das instituições — inclusive da própria Academia Brasileira de Letras.
A cadeira 33 não será ocupada por uma “representante”; será ocupada por uma construtora de caminhos. A candidatura de Eliane é mais que um gesto de inclusão simbólica: é o próprio Brasil tentando se refazer de seus escombros coloniais. Por mais de um século, a ABL foi um palco de vozes brancas, eurocentradas e masculinas. Não é possível falar em literatura brasileira sem reconhecer a Terra Pindorama que lhe serve de território — e as vozes que tentaram calar.
Eliane é fundadora do GRUMIN (Grupo Mulher-Educação Indígena), articuladora de redes internacionais, indicada ao Prêmio Nobel da Paz, Doutora Honoris Causa pela UFRJ. Mas sua maior credencial é a travessia que fez entre o silenciamento e a palavra.
A sua luta, como a de tantas mulheres originárias, é travada em meio à invisibilidade, com resistência incessante e força ancestral. Ela chega onde o Brasil ainda hesita em entrar e leva consigo os nomes que nunca couberam nos livros didáticos: os mestres anciãos oprimidos, as mulheres abusadas, as crianças indígenas sacrificadas pelo racismo ambiental, os territórios violados. Cada página sua carrega o que a história oficial tentou sepultar: um Brasil indígena, feminino, insurgente, rico em culturas e cosmovisões espirituais e epistemológicas milenares.
A eleição de Eliane não é um favor, mas pode ser o início de uma reparação histórico-cultural do Brasil ao se reconhecer como Terra Indígena, lugar de mulheres guerreiras que adentraram o século XXI para retomar o lugar de fala que lhes foi negado.
Por isso, este não é um mero voto literário. É um manifesto contracolonial, antirracista e antipatriarcal. Expressa um compromisso com os 305 povos indígenas desta Terra Pindorama chamada Brasil, os quais resistem para manter florestas de pé, lutam em favor da manutenção das nascentes dos rios e entregam suas próprias vidas diariamente para honrar a Mãe Terra.
Por estas e muitas outras razões, no dia 10 de julho, quando a ABL decidir seu futuro, espera-se que não o faça com negação, mas com memória, coragem e justiça. Que eleja Eliane Potiguara, não só pela excelência de sua escrita, mas porque sua palavra é território sagrado; a sua narrativa é feita de raízes ancestrais profundas.
A cadeira 33 da ABL aguarda a prestação de uma dívida acumulada por séculos, e que possa ser ocupada pela primeira mulher indígena, pioneira na palavra que corta e atravessa os paradigmas ocidentais. A sua presença é o que falta para que o Brasil possa começar a se escrever por inteiro.
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