Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN, é Professora e pesquisadora do IFESP-SEEC, atuando nos cursos de Pedagogia e Letras. É produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, membro da UBE/RN, da SPVA e de várias academias de Letras no Brasil e em Portugal. Tem livros solos infantis e de poesia, publicados no Brasil
Na V Assembleia de Mulheres Indígenas do Rio Grande do Norte - AMIRN. realizada na Comunidade Ponta do Mato, o que se viu não foi apenas debates sistematizados. Foi memória em movimento. Mulheres de várias aldeias do RN discutindo políticas públicas, denunciando a exclusão, recontando a sua história com a própria voz.
Na Assembléia organizada pela microrregião de mulheres da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo -APOINME, elas falaram da saúde que chega tarde – quando chega. Citaram a educação escolar indígena diferenciada, a dificuldade de acesso à aposentadoria rural, da complexidade de acessibilidade à saúde básica, da burocracia e do racismo institucional que transforma o direito em um processo árduo de busca e sofrimento. Mas também falaram da força da resistência, da potência da espiritualidade de cada mulher, como terra que brota mesmo depois de pisada.
As falas das mulheres indígenas durante os debates, revelaram que elas não querem e nem precisam serem imagens exóticas em cards nas redes sociais. Elas buscam a dignidade de falar e escrever na sua língua sem serem corrigidas, ensinar seus filhos sem terem que esconder sua cultura, andarem pela cidade sem terem que provar a sua existência .
Elas exigem o que lhe é de direito: terra, tempo, voz, o cumprimento da Constituição de 1988. Esta última que diz tanto, mas cumpre tão pouco. Elas conhecem as falhas da lei, porque sentem na pele o que o racismo institucional constrói.
Cada fala se configurou um corpo/território que insiste no reconhecimento dos seus pilares ancestrais, porque são as mulheres indígenas que em todas as regiões, dia após dia, renascem mais fortes na luta pela vida.
Os representantes da FUNAI, da SESAI, do IDEMA, da SECULT/RN, entre outras organizações municipais e estaduais presentes, assumiram o desafio de dialogar com as necessidades e os interesses de cada comunidade representada pelas mulheres indígenas presentes. A interação entre as partes, se desenvolveu com fluidez e organização, sob a mediação de habilidosas lideranças de suas comunidades.
As organizações que compuseram as mesas, que tratavam de temas como saúde, educação, moradia, demarcação de terras, meio ambiente, cultura e etnodesenvolvimento, trouxeram informações importantes dos direitos humanos das mulheres indígenas em todos estes segmentos. Os argumentos se conectavam as reparações históricas, ás dívidas sociais do Estado aos povos originários e as múltiplas adversidades racistas e misóginas que as mulheres sofreram e ainda enfrentam.
As falas dos representantes amenizaram dúvidas e fortaleceram o ânimo das mulheres nas lutas que seguem. As diversas narrativas ao longo dos três dias de assembléia, confirmaram a legitimidade das suas buscas vinculadas as memórias daquelas que estavam aqui quando os mapas ainda não tinham fronteiras e os nomes das árvores ainda eram ditos em línguas silenciadas.
Nas rodas de debates, as memórias da ancestralidade de cada mulher traduziam manifestações de dores e das práticas de resistência. Evocações que precisam ser reescritas com mais escuta, verdade e presença.
Tais manifestações, indicam que elas não querem voltar ao passado. Querem caminhar com autonomia para o futuro em que suas filhas não precisem se defender o tempo todo. Um tempo histórico em que o seu território não seja constantemente ameaçado. Um futuro em que ser mulher indígena, não seja apenas resistência, mas existência plena.
Apesar que muitas vezes as estatísticas voltadas para o estudo dos povos indígenas do RN reduzirem seus corpos ao genocídio colonial, as mulheres indígenas seguem em roda, em rede, em luta. Sabem que ocupar espaços é mais que política contracolonial, é sobrevivência.
Como participante neste evento pela primeira vez, senti de perto que as manas indígenas do RN jamais se renderam. Elas vieram antes das palavras escritas, antes do nome Brasil e do direito ser decretado em papel. Vieram junto com os rios, os pássaros, o cheiro da mata depois da chuva. Vieram com o silêncio das noites e o grito da ancestralidade.
Hoje, elas estão nas aldeias, nos contextos urbanos me nas universidades, na roça e no plenário, no canto do Toré e nas audiências públicas. Estão na escrita de projetos culturais, na formação de lideranças, nos sonhos de cada menina que sabe que pode ser mais que um número de estatística social.
Portanto, penso que não há quem dê conta da sabedoria da mulher indígena que caminha com os pés descalços e os olhos abertos. Elas seguem criando caminhos, tecendo alianças, fortalecendo redes, levantando a voz.
Quando a mulher indígena se ergue, ela não sustenta só o seu povo. Ela sustenta o céu que cobre a todos e continua a parir o futuro.
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