Eva Potiguara

Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN. É escritora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus 2023 do MINC, na categoria Romance.

“Minha Aposentadoria Não é um Fim: é um canto de recomeço da Arte que Sou”

17/07/2025 12h15

 

 

Dizem que a aposentadoria é o “fim da linha”, porém,  discordo. Pra mim, na condição de professora de instituição pública por mais de três décadas, é o momento em que a estrada se abre em mil direções e o coração, antes dividido entre turmas, planejamentos e reuniões, agora bate mais livre — para criar, sonhar e servir de outras formas.

 

Quando decidi ser professora? Acho que foi na escola primária. Ainda lembro o primeiro dia de aula, quando criança, aos seis anos, cheguei à escola pública usando um tênis azul pintado com caneta BIC — porque as condições financeiras da família era pouca, mas o meu sonho era imenso. Este episódio me fez pensar no direito de estudar e aprender, perante a desigualdade social. Não posso deixar de citar as brincadeiras de “escolinhas”, imitando as professoras. Estes jogos de faz-de-contas marcaram bastante a minha formação social e me ajudaram a pensar que de alguma forma eu poderia contribuir para tornar a sala de aula mais agradável e criativa para estudar. 

 

Me lembro bem do dia em que aos dezenove anos, fui nomeada para assumir  a primeira escola de ensino fundamental, na periferia da Zona Norte de Natal/RN. Ali, no meio do cheiro da sopa da merenda escolar, da tinta guache e do barulho das turmas, entendi desde cedo, que ser professora não era apenas um trabalho, mas um chamado que implicava estar disponível para ser um eterno aprendiz. .

 

Com o tempo, colecionei mordidas de crianças, tintas na roupa, sorrisos gratuitos e abraços inesperados — cada um se tornou um aprendizado mais pertinente que qualquer certificado acadêmico.

 

Vieram também os títulos: graduação em Artes, mestrado, doutorado em Educação, prêmios nacionais e internacionais, convites para congressos e palestras. Publicações? Muitas: livros de arte, poesia, literatura indígena, artigos científicos, roteiros. Mas sabe qual foi meu maior título? Ser uma artista insubmissa e uma aprendiz crítica reflexiva permanente.

 

Foram mais de trinta anos ensinando e aprendendo. Da educação infantil ao ensino superior, das escolas simples da periferia de Natal, às bancas acadêmicas da UFRN, UERN e IFESP. 

 

Quantos rostos? Milhares. Quantos nomes? Incontáveis. Mas cada olhar recordo como quem guarda sementes. Algumas floresceram em médicos, advogados, artistas, professores. Outras floresceram nos abraços afetuosos que recebo nos reencontros pela vida.

 

Cada projeto cultural, sarau, roda literária, oficina de arte e resistência, teceu a teia que construí. E acredite: foram muitas tessituras — da construção da tese “A Ludopoiese na Educação Infantil” no doutorado em educação, passando pelos “jogos viso-corporais” do projeto de mestrado, às oficinas de cultura popular no CAIC, às produções audiovisuais no YouTube e as publicações aqui e além-mar, são muitos dados que a minha memória não conseguem sistematizar. 

 

E mesmo nessa produtividade intensa, jamais perdi meu lado “arteira”. Nas salas de aula, sempre fui aquela professora que contava histórias com “sotaque potiguar”, fazia piadas no meio de uma teoria, trazia uma canção no improviso ou um olhar reflexivo  quando o silêncio dizia mais do que as palavras. 

 

Minha arte nunca teve moldura. Ela ganhou corpo, voz, movimento e propósito e seguirá no viés contracolonial — no discurso e na prática — de quem ainda tem muito a aprender como Ser que se constrói no caminho a cada passo dado, a cada experiência vivida.

 

Entre as maiores conquistas? O Prêmio “Jabuti” 2023, o Prêmio “Literatura de Mulheres “Carolina Maria de Jesus 2024”, o Prêmio “Professores do Brasil”que recebi do Presidente Lula no seu primeiro mandato em 2004. 

 

Entretanto, nem estes títulos e as dezenas de artigos científicos e coletâneas que publiquei, podem se comparar com a dádiva decolonial que recebi de articular o Mulherio das Letras Indígenas em 2021, ecoando vozes de mulheres que a história tentou silenciar.

 

Nesta semana na despedida do meu lugar de trabalho, não consegui dizer “adeus”. Acionei o modo “fora do padrão”: preparei um lanche simples e acolhedor, do jeito que acredito que a vida deveria ser: uma bela mesa com comida caseira, conversas, risos e afetos — entre colegas que, mesmo diferentes, se respeitam no caminhar.

 

Hoje, não me aposento da educação. Me reposiciono para o movimento plural, intercultural e seguirei como Eva Potiguara: filha do povo Potiguara Sagi Jacu, escritora, artista, educadora, ativista. Lutarei por quem não foi ouvido, ensinando quem quiser aprender e, principalmente, aprendendo de quem sabe ensinar com o coração aberto para a diversidade e a decolonialidade. 

 

O maior prêmio que levo? São os amigos que fiz — entre alunos, colegas e parceiros de caminhada. Gente que confia no riso fácil da “Pequena Eva” que sempre fui, no café compartilhado na sala dos professores, no poema recitado sem aviso e no abraço que cura um dia difícil.

 

E assim encerro mais um capítulo da minha história. 

Mas, e o livro desta caminhada?

Ah, esse ainda está longe de terminar.

Aûîébeté Xe irû!

“Muito obrigada, companheiras e companheiros!”

 

Com arte, luta e afeto,

Eva Potiguara

 

 


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