Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
Uma zabumba, uma sanfona e um triângulo são suficientes para fazer levantar poeira no São João do Nordeste atualmente? Vou deixar você pensando sobre isso. Tais instrumentos dão o ritmo do forró, do xote, do xaxado e do baião. São eles que fazem acontecer o chiado da chinela que, volta e meia, vem com um cheiro no cangote. Se o chão for de barro batido, o chiado além de desenhar no chão a alegria, também faz levantar poeira. A culinária deixa evidente que a festa celebra a colheita, depois de um tempo bonito de chuva que, junto com a asa branca, traz fartura.
Mas antes de o forró se tornar o ritmo oficial dessa celebração tal como a conhecemos hoje, o festejo junino era celebrado com vários ritmos: coco de roda, marchinhas tradicionais, emboladas, modinhas juninas, polcas instrumentais que acompanhavam as quadrilhas e até valsas. É o que aponta um dos estudos coordenados pelo escritor Mário de Andrade, quando esteve em uma Missão de Pesquisas Folclóricas, no ano de 1938, na região de Baía da Traição (PB).
Quando Luiz Gonzaga surge no cenário cultural brasileiro, na década de 1940, incentivado por estudantes cearenses a tocar as músicas do sertão nordestino em um concurso promovido pela Rádio Tupi, no Rio de Janeiro, ele desata na sanfona seu “Vira e mexe”, música que lhe trouxe o prêmio e marcou o início da sua carreira. O artista pernambucano popularizou-se mesmo com a gravação de “Asa Branca” (1947), “Juazeiro” (1948) e “Baião de Dois” (1950). Estava começando uma nova tradição cultural do Nordeste para o Brasil.
Lembrando que, em 1919, quando o Brasil estava sob a presidência do paraibano Epitácio Pessoa, uma parte do “Norte” passou a ser identificada como Nordeste para melhor mapear os estados brasileiros mais castigados pela seca. No sentido de região geográfica tal como a conhecemos hoje, foi oficialmente criada em 1920 e o termo para se referir aos nove estados que a compõe só foi estabelecido em 1970 pelo IBGE.
Dito de outra forma, em sua fundação, o Nordeste foi associado à ideia de lugar de não prosperidade e improdutividade que imperou (e ainda impera) no imaginário coletivo do sudeste-sul. Decorre dessa impressão o preconceito tecido a partir da ideia de que somos um povo atrasado.
Por que Luiz Gonzaga é importante nesse processo de construção do Nordeste? Exatamente por sua criação artístico-popular fortalecer a nossa identidade, embora sua arte também deixe registrada a problemática social que assolou significativa parcela da população brasileira. Em “Só sei que foi assim”, o jornalista potiguar Octávio Santiago investigou a trama narrativa do preconceito contra o povo nordestino, destacando os instrumentos de ataque e estereotipagem da nossa cultura que vão “de falas sutis a gestos escancarados, o olhar enviesado, quando se atrela para o mal, permeia estereótipos que são produzidos consciente ou inconscientemente, afetando a noção de identidade e o sentimento de pertença.”
Para dissipar essa imagem, os sucessos do Velho Lua chegaram em hora oportuna, tornando o São João uma celebração mais nordestina, ao cantar a realidade sertaneja com sotaque específico em letras acompanhadas pela sanfona, sua parceira nessa caminhada como agente-mediador cultural. “Asa Branca” não é apenas uma canção, mas um testemunho histórico-musical sobre o êxodo rural dessa região em foco, ocorrido com uma coragem e esperança admiráveis, traços do nosso povo. Ninguém deixa sua terra natal por mero capricho, mas sim para mudar o destino de vidas severinas. Por outro lado, ao sair, levamos o Nordeste dentro da gente.
Atualmente, com a mudança das atrações musicais nas festas juninas nordestinas, constatamos que nossa luta permanece, dessa vez, para manter a tradição. Trago, portanto, um pequeno relato sobre o show de Alok, cujo trabalho admiro, ocorrido no Arena das Dunas para servir como contraponto a tudo que já foi conquistado pelos artistas nordestinos.
O relógio marcava 22 horas e 30 minutos da única sexta-feira 13 de 2025, quando uma estrondosa batida eletrônica tomou conta do Polo Arena das Dunas. No palco, uns cactus holográficos se encarregavam de informar cenograficamente que aquela festa era junina, contudo a música “Light It Up” informava as mais de 100 mil pessoas que aquela era uma rave no coração da cidade.
Para quem nunca havia estado em uma festa assim, certamente passou a entender o motivo de raves serem feitas normalmente em espaços distantes dos centros urbanos. O som é tão inebriantemente pulsante quanto perturbador de tão alto. Para uns, é mágica; para outros, um “bate estaca”. Dá para imaginar as pessoas que residem nos prédios próximos ao Arena.
O DJ brasileiro Alok era o maestro da mesa de som, embalando as pessoas numa playlist alucinante, com sucessos hitados no TikTok e nas demais redes sociais, que revisitou sucessos da música eletrônica dos anos 1990 até o século XXI – do sample ao beat, combinando de forma inteligente as batidas.
Lá para as tantas, Natal estava desabando em chuva, quando o DJ goiano de 33 anos anunciou um presente no céu. Eram os drones materializadores do verso cantado por Luiz Gonzaga: “Olha pro céu, meu amor!”, uma homenagem junina que desenhou o nome da cidade, além de trazer o simbolismo nordestino dessa época do ano estampado em forma de fogueira, bandeirinhas, balão, a sanfona envenenada do Velho Lua, um chapéu de cangaceiro, o rosto de Luiz Gonzaga e até mesmo um postal do RN, a Praia de Ponta Negra, enquanto o público captava tudo isso com seus celulares cujas câmeras-olhinhos-de-fogueira registravam os indícios da tradição junina nordestina que deu o ar da graça dentro da playlist do DJ, o eletroforró, gênero que tem ganhado aceitação do público mais jovem.
Conhecido por trazer em seus shows algo da cultura local, a música “Vai no Trem”, da Banda Grafith (que hitou nas redes após ser tocada no Big Brother Brasil) puxou uma locomotiva humana dentro da festa.
Além de ser o 4.º melhor DJ do mundo, segundo a Revista Britânica DJ Mag, Alok Achkar Peres Petrillo é produtor musical brasileiro, ativista ambiental, responsável pela criação do Programa Planeta Verde de preservação de ecossistemas na Amazônia. Para fechar essas credenciais do artista, resta acrescentar seu apoio irrestrito às comunidades indígenas.
A pergunta que deve ser feita: como fica a tradição nisso tudo? É muito tênue a linha que separa o apagamento de uma tradição de um resgate cultural desta. Isso porque a morte de uma prática cultural, costume ou crença se dá com mudanças sociais, avanços tecnológicos e outras influências culturais. Não se trata aqui de problematizar o trabalho do DJ Alok, que usa a tecnologia como aliada da tradição - algo raro entre os profissionais deste segmento.
Duas coisas estão em questão nessa programação junina: o desejo de inserir Natal no circuito de festas juninas gigantescas (modelo que está sendo copiado por Parnamirim e outros municípios potiguares), concorrendo com Campina Grande, Caruaru e Mossoró além dos fins eleitoreiros, já que o atual prefeito declarará apoio ao seu candidato nas eleições de 2026 (Não se pode perder isso de vista) e usará essa festa como pauta no palanque.
Se de um lado, a presença do DJ coloca Natal no circuito das megafestas, do outro, as vozes de artistas potiguares trazem questionamentos, localizando a reflexão sobre a cultura junina numa instância para além da Indústria Cultural. Basta ver a entrevista de Deusa do Forró e as postagens de Dorgival Dantas em suas respectivas redes sociais. O que ambos sinalizam é a manutenção da tradição nordestina que implica na formação de nossa identidade. São projetos dessa natureza, promovidos pela atual gestão, que alçam os artistas potiguares para o mundo, transmitidos via YouTube, contudo a Prefeitura os deixou de fora.
Você já imaginou sambistas de escolas tradicionais (grupo especial) do Rio de Janeiro convidando um forrozeiro nordestino para puxar o samba enredo no carnaval? Então, por que as atrações nordestinas estão ocupando a abertura e não o show principal? - lembrando que os shows principais em 2025, em sua maioria, não trouxeram repertório junino. Quando traziam, era em outro ritmo, descaracterizando o forró, conforme Flávio José sinalizou em entrevista.
A preservação de uma cultura passa pelas políticas públicas. Se os gestores não se importam com a manutenção dela, a tendência é o apagamento. O cenário artístico brasileiro é diverso e há lugar para todos, mas o São João é uma festa nordestina e não podemos perder esse foco.
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