Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

O Levante de Leila Tabosa

25/04/2025 01h56

 

Caleidoscópica, levante é uma palavra que aponta para alguns sentidos: o ato humano de se erguer, um motim contra uma autoridade estabelecida, um local de nascente. Poeticamente, todos esses sentidos entram em confluência quando as palavras são tecidas na força das águas, fazendo o verbo pegar delírio.

 

O Levante das Águas (Urutau, 2025), livro de Leila Tabosa, chega com essa força, lembrando que somos átomos movidos por muita água que transita na matéria vida tão fina: da lágrima ao suor, dos mares internos ao gozo esguichado. Tudo isso dividido em quatro partes: (I) Águas Sagradas ou de (im)permissão social; (II) Deságues nas Figuras; (III) Revoadas Molhadas e outras águas; (IV) Águas de Encanto e de (des)Alento.

 

Na primeira delas, Águas Sagradas ou de (im)permissão social, a preparação do terreno é feita pelo poema de abertura – título homônimo ao do livro – que não vem maternar leitores, mas sim escancarar um cotidiano feminino de uma mãe que vive na lama do mangue. Os porões da sua vida privada são transformados em “espetáculos nas águas duras de lama” vistos de cima, através de drones, por turistas – este outro que desconhece a realidade e se mantém distanciado dela.

 

No enquadramento da câmera, há “Choro de criança no colo. / Com o espelho velho pontudo defesa em riste / na mão livre suada e suja, refrato o drone.” É com esse espelho, elemento mágico e simbólico tão usado nos contos de fadas (que passou como tocha pelas mãos de Cecília Meireles, de Clarice Lispector e de Adélia Prado até chegar às de Leila Tabosa) que a mãe refrata o drone – porque a poesia, além de ser espelho que faz refletir, tem essa capacidade de refratar, isto é, reconduzir a uma reinterpretação da realidade, modificando o que foi observado à primeira vista. Em outras palavras, o poema de abertura convida a um pacto: observar melhor essa realidade, não tão distante dela como fazem os turistas. Para isso, é promovido o levante poético, condição sine qua non aos leitores(as) que se permitem ver além.

 

Ainda nesse primeiro momento, a infância aparece simbolizada pela liberdade e contato com a natureza nos poemas “A chuva” e “Banho de lagoa”, bem diferente da que experienciamos hoje com a atual epidemia da hiperconexão que trancafiou crianças dentro de casa. Nas fendas dos versos, a adolescência explode com a descida da menstruação e o despontar do bico do seio da menina-moça na camiseta translúcida tão natural (quanto inevitável) como um botão que se abre no campo.

 

Em coro, refrão e estribilho, ainda na vibe adolescente, o poema Virgindade traz como ladaínha as muitas vozes da sociedade com seus tabus que atravessam as mulheres na História e nas culturas. 

 

Os atravessamentos seguem o fluxo tingido os poemas seguintes de vermelho-sangue. Em “Bolsa”, acompanhamos uma jovem, mãe-solo, prestes a ter o primeiro filho. Para além das violências, ainda sofre com a obstétrica. Quantas em situação semelhante neste Brasil?

 

Em “Panos de Mulher”, toda uma vida em ciclos femininos passa como um filme de Almodóvar: Antes da chegada (“Aprendi com os varais das velhas que mulheres precisam de panos. [...] De que tamanho serão os meus panos?”); Menarca (“Não chore menina, você agora é uma de nós”); Depois da chegada; Resguardo (“Quaresma feminina de intensidade”); Climatério e Menopausa (“Sem panos de mulher”, fase de “Namoros livres”). Assim, despedimo-nos da primeira parte.

 

Em Deságues nas Figuras, segunda parte da obra, encontramos versos igualmente críticos com teor social, uma forma de intensificar o fluxo das águas no livro. O marco é “O Farol da Praia”, poema que parte do seguinte paradoxo: simbolismos do mar em movimento e profundidade versus superficialidade das pessoas rasas que apenas tiram selfies, distraídas e desconexas desse mar salgado, sequer percebendo o farol.

 

Sendo o farol um símbolo da direção para os que estão em um mar de incertezas, por isso mesmo remete à iluminação espiritual, o poema dá voz a ele, humanizando-o. Quem senão os poetas e as crianças ouvirão a voz que sobressai entre a ferrugem no monumento? “Eu ainda sou o Farol velho das glórias, das músicas, dos poetas.” – diz ele do alto do seu lugar de memória (poética).

 

Neste périplo das águas, aparece “Dragão do Mar”, poema que traz uma pergunta-motim: “Com quantas jangadas se faz uma Revolução?” Os versos se referem ao movimento abolicionista no Ceará, encabeçado por Chico da Matilde – não dá para deixar de notar uma prática oral em cidades nordestinas, a escolha do nome informal para se referir a uma pessoa, nesse caso, ao herói da Pátria Francisco José do Nascimento (1839 – 1914).

 

De repente, deparamo-nos com “Poço dos Desejos”, o qual, na força da tradição dos poetas populares, traz o curioso caso de uma mulher que se casa com uma cacimba. Dessa forma, permeada pelo fantástico, a poesia dá o seu recado, considerando justa toda forma de amor.

 

Nessas travessias, as referências sertanejas do “Gargalheiras quando sangra”, do Nordeste “bonito de chuva” encerram essa segunda parte com a água que prepara a terra para a colheita, motivo de celebração.

 

A terceira parte do livro, Revoadas Molhadas e outras águas, perscruta o Delta do Parnaíba e a Ilha de Fernando de Noronha em poemas-rasantes com acuidade não de quem apenas observa, mas de quem é parte dessa natureza.  A voz poética voa com a guará vermelha e com morcegos fêmeas, atravessa o mangue dos bebês caranguejos, nada com as desnudas tubarões-fêmea em Noronha. No fim das contas, o bioma e suas espécies são metáforas que aproximam o nosso bicho interior dos bichos da natureza porque o todo sem a parte não é todo. Importante abrir um parêntese para as epígrafes que a autora utiliza, dialogando com a poética de escritoras portuguesa e brasileiras: Sophia de Mello, Hilda Hilst, Zila Mamede, Ana Paula Tavares, Kátia Cilene, Eliana Alves Cruz, Maria Valéria Rezende, Micheliny Verunschk, Nísia Floresta, Auta de Souza, Bia Crispim e Araceli Sobreira.

 

A quarta e última parte da obra, Águas de Encanto e de (des)Alento, inicia com o Delta do Parnaíba novamente. Contudo, dessa vez, enxergamos os afluentes poéticos de Leila Tabosa, respectivamente: Manuel Bandeira, Torquato Neto, João Cabral, Aluísio Barros (o anjo torto de Apodi/RN) e Clarice Lispector. Por que esse retorno ao Delta? Acaso, a mesma pessoa se banha no mesmo rio duas vezes? Esse segundo olhar é mais profundo, adentrando as camadas do descaso, levando-nos a reparar melhor a nossa humanidade (perdida) perante a terra que nos alimenta e os rios que nos saciam a sede.

 

No encerramento desse excurso, “A gata de sarna” se desdobra num poema-seriado, estruturado conforme as partes do animal (metonimicamente braços de um mesmo rio): a cabeça, as patas (esquerdas e direitas), o dorso, a barriga, as salivadas e lambidas no dorso, o rabo – uma alerta de que tudo tem um começo, um meio e um fim. Aqui, a autora deixa as suas digitais, enquanto conhecedora do Rio Grande do Norte e seus problemas socioambientais. Por mais que aponte para atmosfera local, esses escritos reverberam no mundo que sente as questões climáticas. Há beleza e também denúncia, senão não seria Leila Tabosa, a gata de sarna mirando o rio Mossoró, chamando atenção da sociedade TikTok com o seu ativismo.

 

Nascida e criada na periferia de Fortaleza-CE até quase sua maioridade, Leila Maria de Araújo Tabosa graduou-se em Letras (UFRN), instituição na qual tornou-se doutora em Poéticas da Modernidade e da Pós-Modernidade. É pós-doutorada em Literatura e Teatro (UFC) e leciona na Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN). Na crítica literária, “Soror Juana Poeta Cult” é sua pesquisa mais representativa, embora possua vários ensaios, artigos publicados e livros organizados dos quais também é coautora. 

 

 

No campo literário, “Ela Nasceu Lilás & Outras Mulheres” (Editora Podes, 2024) é seu primeiro livro de contos, indicado ao Troféu Cultura (2024). “O Levante das Águas” (Editora Urutau, 2025) marca sua estreia na poesia. Aliás, há muitas coisas para serem vistas na poética dessa cearense-potiguar que recebeu o merecido título de cidadã mossoroense e é membro dos coletivos Mulherio das Letras Nísia Floresta e Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA/RN). Leila Tabosa é um acontecimento debaixo do sol nordestino; é manancial de poesia viva no chão dos simples. Sua nova obra veio para lembrar que quem é da água não conhece naufrágios: “Sou água firme levantada.”

 

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EVENTO DO MULHERIO DAS LETRAS NÍSIA FLORESTA: MULHERES LANÇAM MULHERES

 

Data: 26/04/2025 (Sábado)

 

Horário: 

 

16h – Clube de Leitura Elas Por Elas

            Discussão da obra:

            “Uma Escola que Sente: Narrativas Reunidas”, de Késsia Pessoa.

            @professora_kessiapessoa

 

18h30 - Lançamento da obra “O Levante das Águas”, 

             de Leila Tabosa / @ela.nasceu.lilas, tendo como atração cultural 

             Rainer Câmara Patriota (UFPB)  e Lucas Oliveira de Moura Arruda (PPGM - UFPB)

             que trarão um repertório hispano-brasileiro.

 

Local: Livraria Nobel do Praia Shopping.

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Um pouco sobre os músicos

 

Rainer Patriota é músico, professor, tradutor e pesquisador, natural de Natal-RN. Bacharel em música pela UFPB, mestre em filosofia pela UFPB e doutor em estética e filosofia pela UFMG, com estágio de pesquisa na Universidade de Halle-Wittenberg. Como instrumentista, atua em contextos e grupos diversos, com trânsito pelos domínios da música antiga, do jazz, da música popular e da música de concerto. Junto a grupos como Camena, Musica Figurata e Mosayco, já se apresentou em diversos festivais nacionais e internacionais como o Mimo, Sonoridades, Oficina de Música de Curitiba, Festival de Inverno de Ouro Preto, Santa Bárbara Jazz Festival, Festival de Música Antiga da UFMG. Em 2019 lançou seu primeiro trabalho autoral com peças para violão solo, o EP Rainer Patriota. Desde 2016 é professor nas áreas de violão, história da música, arranjo e música de câmera do Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba, membro permanente do Programa de Pós-graduação em Música da UFPB, além de colaborador do Programa de Pós-graduação em Estética do Instituto de Filosofia, Arte e Cultura da UFOP. Coordena o grupo de pesquisa Comunidade de estudos estéticos e musicológicos e o coletivo dedicado à música autoral Novos Goliardos. Instagram: @rainer_patriota

 

Lucas Oliveira nasceu no Recife. É músico, cantor, compositor, poeta e ator. Doutorando em musicologia (UFPB, desde 2022), mestre em etnomusicologia (UFPB-2015) e licenciado em música (UFPE-2011). Integra a Associação Respeita Januário de Pesquisa e Valorização dos Cantos e Músicas Tradicionais do Nordeste, com a qual participou das pesquisas para a patrimonialização do repente e do forró. Em seu mestrado, trabalhou com a música do cantador baiano “sertanez” Elomar. O primeiro recital importante dessa pesquisa aconteceu em 2015, na Usina Cultural ENERGISA, João Pessoa-PB. Desde essa época, Lucas vem realizando recitais com as músicas do cancioneiro popular nordestino e suas próprias composições, além de outros repertórios relacionados ao universo do violão. Sua pesquisa no doutorado em música investiga os sentidos da voz cantada e declamada, a partir de uma visão entre fenomenologia e etnomusicologia, a partir da revisitação dos registros musicais do movimento folclórico no Brasil. Instagram: @lucasoliveirarecife

 

 


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