Daniel Costa

22/10/2022 08h16

O FASCISMO NOSSO DE CADA DIA

Cena 1. Uma jovem senhora vai à padaria no alto da Candelária. Chega a sua vez de passar no caixa. Ela demora um pouco mais. É que um pedinte acaba de lhe solicitar dois pães. Atrás dela um homem que está na fila se revolta. Ele não quer esperar. Grita. Com ódio animalesco começa a chamá-la de puta petista. Corta. Cena 2. Crianças, idosos e mulheres participam de uma manifestação no sinal que dá acesso ao conjunto Ponta Negra. Uma viatura da polícia passa no local e resolve lançar gás de pimenta nos manifestantes. Corta. Cena 3. Um senhor de boné vermelho entra num bar no bairro de Petrópolis. Ao vê-lo, um dos frequentadores destila agressões verbais.

Alguns estudiosos entendem não ser cabível, atualmente, falar em fascismo. Para eles o fascismo só aconteceu na Itália, dentro de um contexto histórico específico, durante o governo de Mussolini, com características próprias. Daí ser impossível vê-lo reproduzido em outros tempos. Nesse sentido, seria um equívoco dizer que existe fascismo nos dias de hoje. A expressão tem um sentido unívoco e historicamente contextualizado.

Não há como negar que esses especialistas têm certa razão. Mas também não é possível fechar os olhos para o fato de ver-se atualmente aqui no Brasil alguns elementos que se identificam com o modelo italiano de então. O discurso da antipolítica, o uso de símbolos pelo poder central para formar uma massa uniforme de apoiadores, o nacionalismo exaltado, a recusa da democracia, o elitismo, a crítica da cultura, a formulação de políticas públicas que têm como ponta de lança o incentivo à violência, e o uso da força para intimidar os opositores. Todos esses elementos, que estavam  presentes no fascismo, são perceptíveis hoje no neofascismo à brasileira. 

No livro “M, o filho do século”, o autor Antonio Scurati narra episódios sobre as frequentes incursões de grupos fascistas, os camisas negras, contra seus opositores, marcadas por espancamentos para intimidar as ligas camponesas e as organizações proletárias vinculadas aos socialistas. E ao escrever a respeito da Marcha sobre Roma, o evento que assinalou a ascensão de Benito Mussolini ao poder, o jornalista Luigi Albertini, então editor do jornal Corriere della Sera, disse o seguinte: “Há quatro anos, os italianos se habituaram a ver na violência o caminho para o progresso ou o encontro de soluções, e a considerar um partido tão mais forte quanto mais ameaçador fosse […] é o que demonstra a indiferença com que o grande público assistiu à insurreição fascista, à queda sem dignidade das autoridades do Estado e à humilhação de todos os poderes do Estado, sem exceções”.

É certo que no Brasil de agora a violência física tem acontecido de maneira isolada. Mas a violência verbal já encontra caminho aberto para se tornar corriqueira. E ninguém se engane: o salto de uma para a outra é curto. O fascismo nosso de cada dia está aí. Só não vê quem não quer.


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