Daniel Costa

01/10/2023 07h47

 

E se os homens engravidassem?

 

No livro "O acontecimento", a grandíssima escritora francesa Annie Ernaux fala sobre o período em que, ainda jovem, na década de 60, engravidou do namorado. Sem poder contar com a ajuda de quase nenhuma pessoa, carregando nas costas o peso de uma sociedade francesa moralista em que o aborto era ilegal, Ernaux irá refletir a respeito da ubiquidade da lei e de sua força acachapante sobre os corpos das mulheres.

O aborto deixou de ser considerado crime na França desde 1975, sendo legalizado em todos os casos até a 12ª semana de gravidez, assim como acontece na maior parte dos outros países da Europa, como na Alemanha, que é totalmente permitido até o primeiro trimestre da gestação, e na Inglaterra, que é legalizado desde 1967.

Mas em lugares atrasados ele ainda é estupidamente qualificado como um delito, sendo feito sempre às escondidas e em locais inapropriados, implicando sérios riscos para a saúde da mulher, porque geralmente ocorre com a gravidez já em estado avançado.

Como dito, nos países em que hoje ele é permitido, fixa-se normalmente um prazo máximo de 4 meses de gestação para que possa acontecer. Nesse espaço de tempo, o feto ainda não faz muitos movimentos, não demonstra sinais vitais, porquanto nem é ainda um ser vivo, já que, fora do útero, não sobreviverá em hipótese nenhuma. Daí ser completamente falsa a informação de que o abortamento é um assassinato.

A mulher, dona do seu corpo, pode decidir o que bem entender sobre ele. Se fossem os homens que engravidassem, o aborto já teria sido aprovado desde a idade média.

A guerra agressiva que se verifica aqui no Brasil contra o direito reprodutivo das mulheres, promovida “por santos pra lá de duvidosos”, retomada agora que o Supremo Tribunal Federal resolveu tratar do assunto, guarda muita semelhança com a luta travada por alguns deputados e senadores contra a aprovação da chamada lei do divórcio. Diziam que o fim do matrimônio levaria à bancarrota da família divina na sociedade brasileira, mas não poucos desses enfáticos defensores mantinham a solidez e a beleza dos seus casamentos, enquanto eram conhecidos como pais de vários descendentes nascidos de senhoras diferentes. Hipócritas visíveis, porém com vozes fortes e convincentes para muitos descuidados.

Já chegou a hora de o país dar um passo civilizatório e deixa de considerar o aborto como crime, ao menos no período inicial da gravidez, evitando assim que o indizível sofrimento suportado pelas mulheres, como o descrito pela escritora francesa Annie Ernaux, continue a acontecer, diuturnamente, tão-somente em razão de um nauseabundo moralismo terceiro-mundista.

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).


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