Daniel Costa

11/05/2017 10h35
O nível de distinção entre as pessoas pela via do consumo alcançou um estágio tal que chega a ser difícil de se acreditar. É muito mais do que simplesmente comprar um carro “x” porque ele possui um visor infravermelho que projeta imagens no para-brisa ou outras escrotices do gênero. Na verdade, falo do extremo do supérfluo, algo como doar um rim para possuir determinada roupa, porém não por que essa roupa tenha fios de seda do Gabão ou abotoaduras forjadas em ouro, mas porque ela é de uma marca “y” que confere status aos seus usuários, que sinaliza, pelo preço, o pertencimento ao grupo das pessoas que "contam". 
 
É o que se vê acontecer também com o lance dos vinhos. O cara adquire um vinho de 10 mil reais, não porque ele traga algum atributo especial, um tchan dionisíaco capaz de causar aparições da Marilyn Monroe ou da Anouk Aimée, mas apenas para dizer em que local ele se situa na escala social, que vai da extrema pobreza à super-riqueza. É puro status. Eu posso e você não pode. 
 
É aceitável que alguém me diga que entre o vinho Dom Bosco e um Pêra-Manca exista uma sensível diferença de gosto e coisa e tal. Só que depois de ultrapassada a linha que demarca a qualidade do produto, o que é bom do que é ruim, tudo o mais é pura balela, é a vida para o consumo de que fala Bauman.  
 
Nessa linha do consumismo nonsense, me deparei recentemente com a criatividade do mercado para criar a necessidade de se gastar a partir desse lance do aumento do preço do objeto a ser consumido, cuja finalidade é causar nas pessoas a sensação de serem diferentes umas das outras, aquele troço de pertencer à confraria que dita as regras.  
 
No caso a que me refiro, essa distinção entre as pessoas pela via do consumo foi causada pela separação de grupos dentro de um espaço físico num show. A diferença entre o ingresso mais barato e o mais caro era tão somente o lugar em que se ficava no gramado do estádio. A chamada área vip (o nome já fala por si só) era apenas o espaço reservado para a turma que teve condição financeira de colocar as pratas na mesa. Não é que o lugar fornecesse uma visão superespecial da banda, com cadeiras acolchoadas, bebida free ou coisa parecida. Uma cerca baixa de metal separava essa rapaziada que soltou mais dólares, dos outros seres mortais. Quem não pôde gastar algum tutu a mais viu o mesmíssimo show, com a única diferença de que estava do outro lado da tal cerca, sem poder entrar em contato, portanto, com as pessoas vips, que sacaram o dinheiro do caixa para, no final das contas, valorizarem um único produto: elas mesmas. 
 
Uma situação surreal, em que o valor do ingresso serviu como um distintivo social, e que o constrangimento que senti provavelmente foi causado pela privação do acesso, da possibilidade de autovalorização. Algo parecido com o que escreveu Pierre Boudieu, para quem é possível que não exista pior privação, pior carência, que a dos perdedores na luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, enfim, por humanidade. 

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