Daniel Costa

26/10/2016 14h52
O judiciário vive hoje uma onda de moralismo que dói no fígado, e a presidenta do Supremo, Carmem Lúcia, é uma espécie de modelo vivo dessa constatação. No seu discurso de posse, ela jogou para a plateia dizendo que estava falando para o povo brasileiro, que a ética é dever de todos e de cada um, e coisa e tal.  Sempre que abre a boca é para bradar contra a corrupção e a ausência de ética na direção das instituições públicas. "E o que é que há de errado nisso?", vai me perguntar o incauto leitor. "Será que o problema do país não tem relação com a moralidade e a corrupção que sulfuram o poder público?". 
 
A corrupção deve ser combatida, e não há nada de mau na pregação de uma ética pública. Mas acho que é necessário ultrapassar o óbvio e discutir qual a utilidade real desses discursos, quando se vê que o judiciário segue a velha máxima do "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço".  
 
Volto ao caso da presidenta do supremo, que é exemplo palpitante. Ela cospe abelhas de indignação contra a imoralidade e a corrupção, fala em não ser o momento de ampliações salariais para a classe, diz que "nenhum juiz quer que o aumento do seu salário seja pago às custas de 12 milhões de desempregados" e tralalalá. Mas, em termos concretos, jamais esticou um braço para formular medidas capazes de combater os salários nababescos da magistratura, em que três de cada quatro juízes recebem remuneração acima do teto constitucional, com o respaldo do próprio judiciário. Carmem Lúcia, aliás, faz visitinhas surpresas aos presídios para constatar o óbvio: que o sistema penitenciário está falido, porém silencia quando o assunto lhe diz respeito diretamente, como os dois meses de férias e o auxílio moradia a que têm direito os juízes, sem qualquer razão plausível. 
 
O que se tem visto em termos de práticas do judiciário, na verdade, é a roda girando noutro sentido. Às vésperas do impeachment, num período de efervescência política, quando o país já se encontrava na bancarrota econômica, o então presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, foi ao encontro do chefe do executivo barganhar o aumento salarial da magistratura. Coisa similar ao que fez Joaquim Barbosa, que espargia moralismo nas sessões do plenário, para depois mandar ao Senado apoio a favor da PEC 63, que previa um aumento de aproximadamente 35% sobre o salário dos juízes. 
 
Já o  Conselho Nacional de Justiça, órgão responsável por fiscalizar e planejar a administração da justiça no Brasil, se apresenta como uma espécie de pai dos meritíssimos, como deixa entrever o caso da juíza do Pará, que depois de manter uma garota de 15 anos numa cela com 30 homens, teve como penalidade a disponibilidade com vencimentos proporcionais. 
 
O mais surreal é que mesmo diante dessa benevolência toda, as associações de magistrados já tentaram derrubar o CNJ por diversas vezes, tendo proposto 20 ações diretas de inconstitucionalidade atacando a juridicidade desse órgão fiscalizador. Ou seja, querem atuar sem amarras, como verdadeiros déspotas. O que também parece ser a razão do insurgimento da classe contra a proposta de lei que pune os abusos de autoridade. E não dá para esquecer a proposta do tribunal de justiça do Rio de Janeiro acerca da bolsa ensino para a escola dos filhos de magistrados, que acabou por desaguar na lei estadual 7.014 de 2015.
 
Os discursos proferidos no seio do judiciário, assim, são castelos de areia que intencionam maquiar a realidade para deixar tudo como está. É por isso que não existe nada mais melancólico do que a atual performance desse terceiro poder. No espaço vazio da antipolítica, do desgaste do sistema representativo, ele não monta no cavalo para assumir as rédeas da manutenção e do desenvolvimento da democracia, mas ocupa a brecha para reafirmar os seus privilégios. 
 
Enfim, contrariando os versos de Camões, mudam-se os tempos, mas não mudam-se as vontades. No judiciário, tudo continua como sempre, inclusive o moralismo. 
 

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