Empreendedorismo

Discol 50 anos: empreendedorismo, memória e alta dose de criatividade e bom humor

07/06/2025 16h53

Por: Eliade Pimentel

Discol 50 anos: empreendedorismo, memória e alta dose de criatividade e bom humor

Foto: Will Araújo
 
Do balcão e da porta da Discol, tradicional loja de discos que resiste há 50 anos no mesmo endereço, à rua João Pessoa, no centro histórico da capital potiguar, o comerciante Luís Brás de Araújo, 68, tem assistido de camarote às mudanças de comportamento da população. Desse privilegiado ponto de observação, um dos corredores principais do bairro Cidade Alta, na capital potiguar, sua cabeça fervilha de ideias que o tem ajudado a se ajustar à evolução da indústria fonográfica e enfrentar as inúmeras dificuldades que o negócio sofreu ao longo desse meio século. “Eu tive de me reinventar de mil formas para sustentar a loja”, destacou.
 
Muito além de ser mais um clássico caso de sucesso de um “office boy” que vira dono do próprio negócio, o que torna essa história especial é o modo com que Seu Luís supera as dificuldades, com soluções sempre muito criativas – e, de certa forma, simples de concretizar. O famoso “pensar fora da caixinha”, como se diz no mundo dos negócios. Adolescente paraibano, ele começou sua trajetória em Campina Grande, por volta dos 16 anos, na matriz da Discol. O proprietário, Paulo Cursino, uma pessoa de gosto musical diversificado, tinha outras lojas e decidiu abrir uma filial no Rio Grande do Norte.
 
De pronto, o jovem que resolvia os mandados nos bancos se candidatou a vir para Natal. “A Discol era uma rede de lojas de discos, com duas unidades em Campina Grande e mais algumas em outras cidades da Paraíba. Ele era um empresário competente, com quem aprendi muita coisa. Seu Paulo tinha um gosto muito especial por música boa, esse era o seu diferencial. Enquanto as lojas em geral eram mais voltadas à promoção da música brasileira ‘mais popular’, ele tinha um gosto mais refinado pro rock, pro soul music e MPB”, relembra. Seu Luís recebeu a “promoção”, assim entre aspas mesmo, pois o salário era o mesmo de sua função anterior.
 
Para quem não tinha sido alçado nem ao posto de balconista, ele veio para Natal com uma missão importante, porém sem contar com melhorias salariais ou outro tipo de promessa. Mas, como insistiu bastante, o jovem apaixonado por música se agarrou àquela oportunidade com uma única certeza, a expectativa de morar com seu irmão, o cantor de serestas conhecido como Maguila, que na época trabalhava no comércio em Natal. “Você vai ganhar o mesmo que ganha, não dá pra você se sustentar noutra cidade”, alertou o patrão. Ao que ele destacou que não se preocupasse, que iria se virar naquela empreitada, com a ajuda familiar.
 
“Eu disse: eu me viro, eu quero trabalhar na Discol Natal. E assim ele me trouxe”, conta. A loja abriu em meados de fevereiro de 1975, duas semanas antes do carnaval daquele ano. A data certa de abertura da loja se perdeu na memória daquele jovem promissor e do seu chefe, ambos ávidos para conquistar o novo mercado. Aos poucos, a filial natalense passou a ser um diferencial no comércio da cidade. Era a loja de discos onde se ouvia (e vendia) muito rock’n’roll, músicas internacionais diferenciadas e MPB da melhor qualidade.
 
 
O auge da loja, sob o comando do seu fundador, foi por volta de 1984. A concorrência, conta Seu Luís, tornou-se quase que desleal, com a instalação de novas lojas de discos, como Modinha e Aky Discos, e principalmente com a chegada de lojas de departamento, que faziam promoções de artistas famosos, como Roberto Carlos, para chamar atenção da clientela no final de ano, que acabavam consumindo outros itens. A nova realidade prejudicou não somente o fluxo de venda, mas, segundo ele, as lojas menores ajudavam também a promover a música regional. “Na Discol, tínhamos como vender os discos de artistas iniciantes na época, como Pedro Mendes, como Paulinho de Macau”, cita.
 
Sob nova direção – “Eu que inventei esse barato”, relata seu Luís sobre o pioneirismo em vender camisetas de bandas de rock. Da segunda metade de década de 80 até o início dos anos 90, a coisa degringolou, como se dizia antigamente, e quase se perdeu ladeira abaixo. Com a concorrência acirrada, mais a transição do vinil para o CD e outras tecnologias, a loja foi perdendo capital e estoque. A Discol ficou quase que totalmente sem fôlego e foi encerrada na Paraíba.
 
Foi então que ele agarrou a oportunidade que o destino lhe apresentou e deu um passo que mudou o curso dessa história. “Em 92, com meus 18 anos de gerência, mais uma pequena ajuda financeira do meu irmão Maguila, consegui assumir o ponto que o patrão ofereceu. E a partir daí, sem estoque, com força e muita garra, eu entrei na loja com a cara e a coragem”, relembra. Ele diz que precisou dar muito “nó em pingo d’água” para sustentar uma loja em meio às lojas especializadas, às lojas de shopping e lojas de departamento, “cada loja maior do que a outra”.
 
Para superar todas as adversidades, que não foram poucas, precisou se reinventar de mil formas: “foi quando eu percebi que vender camisetas de rock era um bom negócio, e comecei, eu fui o pioneiro, muita gente depois me seguiu, muita gente me segue até hoje, mas quem vendeu as primeiras camisetas de rock fui eu”, destaca. E assim a Discol se adaptou às novas tecnologias, ocupando o nicho de prestação de serviços, convertendo músicas e filmes em arquivos digitais, construindo playlists personalizadas e migrando coleções de clientes para meios físicos como pen drive, cartões de memória, HD ou outros meios.
 
Discola -  O estilo casual de seu Luís, composto pelo bom e velho look calça jeans, camiseta e tênis, reflete o seu jeito de encarar o emblemático empreendimento. Sempre com os pés no chão, sem dar nenhum passo além do que suas pernas alcançam. A não ser a ajuda financeira do irmão, lá no início, ele sempre “segurou as pontas” para não correr atrás de empréstimos. “Fui diminuindo meus custos pessoais, entendeu? A família tinha que andar de acordo com as minhas condições. E daí a gente foi sustentando a loja”.
 
Mesmo em meio à situação notória de abandono da Cidade Alta e adjacências, e, entre altos e baixos, como ele costuma dizer, as coisas seguiam seu rumo e em nenhum momento ele relaciona os problemas crônicos e estruturais do bairro, além daqueles já citados referentes à indústria e mudança de interesses ou até do perfil dos seus consumidores. Porém, ninguém esperava pela pandemia, que mudou quase tudo para todo mundo. E foi depois daquele período fatídico e incerto, há poucos mais de três anos, que sua filha Gabriela Almeida de Araújo, 29, começa a se interessar pelo negócio.
 
 
Com formação e atuação no mercado como arquiteta e urbanista e técnica em edificações, ela é responsável pela nova fase cujo marco foi o evento Discola, com discotecagem e intervenções urbanas. As iniciativas dessa primeira ação e outras que vieram na sequência, como as festas de aniversário de 49 e 50 anos, apresentou a Discol para um público jovem que acompanha esse olhar de Gabi. De pouca conversa, ela preferiu mandar seu currículo, resumido em uma única página, para responder sobre o que a levou a trabalhar na loja e qual é a sensação que ela tem de ser responsável por renovar o fôlego da empresa.
 
“Atuo na revitalização do Centro Histórico de Natal, promovendo a ocupação criativa e o fortalecimento das relações entre espaço urbano, cultura e comunidade”, destacou em seu CV. Mais uma vez, o que diferencia o perfil da história da Discol é a coerência com que as coisas acontecem. A perenidade do negócio revela também o quanto as pessoas gostam de manter tradições, dão preferência a ambientes de localização acessível e curtem locais com aparência vintage e retrôs, que ativam as memórias mais preciosas, geralmente ligadas às boas fases da vida, algumas vezes vividas até por outras pessoas, como familiares e amigos.
 
Vale salientar que a Discol está situada no térreo de um prédio bem antigo, que abriga a primeira loja maçônica do Rio Grande do Norte. E é para cima que Gabi costuma olhar, para a representatividade do patrimônio arquitetônico e cultural da cidade, escondido em fachadas sem sentido. Precisamos exatamente de mais “Gabis”, que instiguem o senso de preservação e inspirem novas e velhas gerações a terem o mesmo olhar.
 
 “Se não der certo, eu monto um cabaré” – Dita aparentemente em tom de brincadeira, a frase engraçadinha de Seu Luís não teve somente a intenção de fazer piada, apesar de evidenciar seu bom humor e seu jeito leve de viver a vida. O “grito que salvou a boiada” foi sua forma de chamar a atenção para dizer a elas, esposa e filha, que estava mais do que na hora de expandir o negócio e era aquela hora ou nunca. E assim, quase no susto, nasceu o Lado B da Discol, que abriu as portas em março de 2025. Pelo jeito, o alerta do comerciante surtiu efeito.
 
Em 2024, quando o ponto comercial ao lado finalmente desocupou e, após algumas tentativas e expectativas frustradas, a empresa contou com as condições certas para expandir. A professora aposentada Simonete Almeida, 55, mãe de Gabi, conta que construiu junto com Seu Luís a trajetória da Discol e também enxergou que não havia outra opção a não ser abrir uma porta e juntar as duas lojas, resultando dois ambientes que se completam. Feito os dois lados de um disco. “Havia essa necessidade de um espaço de estar e lazer na Discol”, disse.
 
 
Café, brechó e colaborações criativas – o formato do espaço nasceu após uma pesquisa do mercado ao redor, e surgiu para suprir essa lacuna por ser algo que combinava com o estilo da filha arquiteta e curiosa na área de brechós. “Acho que o primeiro desafio foi realmente a gente entrar no mundo do café. A gente resolveu, ah, vamos colocar um café. Eu nunca trabalhei com alimentos, nem ela. Até então eu entendia bem da área de lojas, de mercadoria, de compra, de vendas”, disse.
 
Em meio a cafés expressos e bolinhos, a cereja do bolo, ou melhor, a azeitona da empada é justamente uma receita de família que foi resgatada. Uma empada de frango com jerimum e cenoura virou o lanche da casa, fazendo uma bela dupla com o mate gelado com limão, algo bem urbano e atemporal. “Resgatei uma antiga receita que eu fazia para as festas de casa”, disse Simonete, ao revelar mais um elemento carregado de afeto, ligando os pontos da história de sucesso no melhor estilo “pé no chão”, que explica a longevidade da Discol.
 
Jovem Guarda – Aos 39 anos, o técnico em edificações Emídio Igor é um colecionador que ama Renato e Seus Blue Caps e outros artistas dos anos 60. Ele trabalha no centro da cidade e gosta de “dar uma zapeada” nos balcões, vitrines e araras da Discol. “Eu passo sempre aqui na frente, já comprei alguns discos aqui, que eu coleciono desde a adolescência. Como já faz um tempo que eu não compro disco, estou voltando às origens, para ver se eu encontro um disco que eu estou procurando há muito tempo”.
 
 
Segundo ele, boa parte de sua coleção de vinis, que ele iniciou ainda na adolescência, foi adquirida na loja e outra em sebos da cidade. Sobre o Lado B, o cliente cativo e fiel aprovou a iniciativa. “Ficou legal, é um brechó aqui do lado, né? Ficou bem bacana, diversifica o público, por apresentar mais uma opção a mais de cultura”, reforça.
 
Consultoria e apoio à economia criativa – Mesmo trabalhando sempre com poucos recursos, pode-se dizer que seu Luís tirou a sorte grande por ser bem-sucedido ao longo desses 50 anos contando com o precioso apoio familiar. Primeiro o irmão, depois esposa e filha. Porém, nem todo mundo tem essa sorte. Ele foi o próprio consultor, ele foi o próprio Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e, mesmo sabendo que existem instituições que apoiam pequenos empreendimentos, ele seguiu quase solo nessa jornada.
 
No entanto, é bom frisar que o Sebrae-RN está com tudo no campo da economia criativa e valorização do centro histórico. Além de editais e hub voltados ao segmento criativo, a instituição de apoio às micro e pequenas empresas tem atuado, historicamente, em iniciativas voltadas à revitalização de importantes bairros de Natal, como o Alecrim e a Ribeira. O assessor técnico Edwin Aldrin explica o que tem sido feito, já alguns anos, para valorizar empreendimentos situados na região central da capital.
 
“No passado, desenvolvemos um projeto de requalificação urbana para o Alecrim, entregue à Associação dos Empresários do Bairro, que o apresentou à Prefeitura. Embora não tenha sido implementado, o projeto representava uma proposta consistente de valorização da região”, recorda. Ele relata que o Sebrae tem participado de diversas ações em parceria com a Associação Comercial da Ribeira e, mais recentemente, com a Prefeitura de Natal. “Nosso foco tem sido o estímulo à economia criativa e à valorização cultural do bairro”.
 
E para deixar aquele gostinho de esperança, ele adianta que está em fase embrionária a construção de um projeto voltado para a Ribeira, bairro-símbolo dos tempos áureos da chamada belle époque natalense. “O Sebrae se coloca à disposição para colaborar com propostas, como a criação de um hub de economia criativa, reforçando nosso compromisso com o desenvolvimento sustentável e com a preservação da identidade cultural da região", destacou. A torcida para que a iniciativa se concretiza é grande, com toda certeza.
 
Discol – Rua João Pessoa, 87. Cidade Alta. Natal (RN) | @discoloficial e @ladobdadiscol.    
 

Autor: Eliade Pimentel