Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN. É escritora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus 2023 do MINC, na categoria Romance.
Mesmo quando o céu se cobre de fumaça e a terra estremece em agonia, quando as bombas caem sobre corpos inocentes entre Irã e Israel, em guerras que já não distinguem razão de barbárie, apesar dos ventos secos varrerem as últimas folhas das florestas queimadas pelo fogo invisível do capitalismo, confesso que eu teimo em sonhar —por uma reviravolta humana em prol do bem viver social e sustentável.
Como mulher indígena, sonhar é resistência perene, pois trago no corpo as tatuagens feitas de silêncios impostos, de apagamentos históricos e de feridas abertas por séculos de colonização. Mas também carrego essas cicatrizes como brasas vivas da minha ancestralidade, que lembram quem sou e o que vim fazer aqui: cuidar da Terra Mãe, da palavra viva, da esperança insurgente — igual a semente que, mesmo sem chuva, brota entre pedras e espinhos.
Além dos meus ancestrais, meu saudoso pai, Eduardo Pinheiro, e o inesquecível mestre Paulo Freire me ensinaram que sonhar não é uma característica ingênua e tola de reescrever a vida. Ambos, de formas diferentes, me motivaram a sentir e a pensar que viver implica amar e cuidar com a boniteza da ética e da esperança, com o outro e com o meio social. Isto é, eles me mostraram que sonhar é esperançar: lutar constantemente para aprender a recriar a vida com equidade social, sem oprimir o outro como inferior.
Dessa forma, aprendi desde cedo que a educação é um ato sensível e crítico, com a vida social e a natureza como unidades interdependentes. Esse tipo de afeto transcende os modelos ocidentais produtivistas de educação, que treinam para o mercado, padronizam mentes e silenciam corpos. E, nestes tempos de indiferença e algoritmos, configura-se como um gesto radical de transgressão contra a visão burguesa, racista, tecnicista e segregadora.
Nesse sentido, meu sonhar é esperança viva com cheiro de terra molhada; é feito de rodas de escuta, diversidade de culturas, saberes e ritmos. Nela, a boniteza se aprende vivendo — sem temer os riscos de transgredir os padrões do sistema capitalista colonial. Isso significa esperançar na resistência, semear olhares decoloniais em meio a uma crise climática e ética, na qual o planeta arde enquanto cifras crescem, e o oxigênio das florestas é substituído pelo dióxido da ganância. A máquina do lucro não conhece limites, não respeita florestas nem corpos.
E, nesse cenário apocalíptico, o capital tenta convencer a sociedade de que sonhar é perda de tempo. Mas sonhar — como nos ensinou o mestre Paulo Freire — é plantar o tempo futuro nas fendas do agora. Enquanto a guerra aterroriza o mundo com seus mísseis, a vibração da espiritualidade indígena sussurra nos cantos da Terra Mãe. Ela ouve os rituais de suas filhas e de seus filhos, resistindo com suas rezas, construindo mundos reflorestados. Enquanto os homens poderosos medem forças com sangue e destruição, meus parentes na luta contracolonial, medem coragem com afeto, com canto, com memória.
Resistir na esperança é também uma pedagogia. Traduz-se em insistir numa educação que não reproduz o autoritarismo, que não normaliza o racismo nem a guerra por interesses estúpidos, que não ensina a competir, mas a partilhar. Uma pedagogia que não se curva ao conservadorismo, que não adoece jovens com metas inalcançáveis e silenciamentos diários, mas promove a liberdade, a vida e a alegria de ser quem se é.
Por essas e outras razões, sou feita de luta e esperança. Minhas raízes estão no ventre da Terra, se movem nas poesias da Mãe d’Água, são abençoadas pelas irmãs árvores e pela avó Lua. Carrego o sangue e as vozes de mulheres e homens excluídos e danço com os espíritos que me acompanham.
Portanto, não ando sozinha. Marcho com meus parentes, com os loucos da esperança revolucionária, com os sonhadores indomáveis que se negam a aceitar o fim do mundo como destino. Seguiremos, mesmo com os olhos marejados, com a alma ferida, porque a Terra Mãe nos pariu para lutar — e não há poder algum que apague a chama de quem é raiz
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