Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

O valor de um abraço

27/06/2025 12h53

 

Neste ano de 2025, em São Paulo, o tema da Parada do Orgulho celebrou o “Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro” como ato político, pois a vida merece ser vivida com dignidade do começo ao fim. Puxando um fio da memória e considerando que, amanhã (28), é o aniversário da Revolta de Stonewall, ocorrida em 1969 na cidade de Nova York, data simbólica por se tornar um marco no movimento pelos direitos LGBT+ , trago uma memória marcante, pois nunca esqueci o fato que partilharei com vocês.

 

As artes estão em meu dia a dia desde que me entendo por gente e a convivência com pessoas LGBT+ sempre foi uma constante em minha vida. Fui bailarina do Balé Municipal, atuei em grupos de teatro e, em certa medida, acompanhava o drama de pessoas expulsas de casa pelos pais, motivados pela discordância da orientação sexual de seus filhos. Era um período histórico no qual, comumente, alguns colegas e amigos “escondiam-se no armário” como estratégia de sobrevivência. Quem não conseguisse se esconder...

 

Nessa mesma época, eu era aluna de Ensino Médio. Em minha turma, tínhamos três colegas no armário com os quais mantenho amizade até hoje, pois aquela turma era uma família, um lugar seguro para se estar. Passávamos o dia na escola e partilhávamos, entre tantas coisas, nossos dilemas adolescentes. 

 

Os anos se passaram e, 20 e poucos anos depois, fui para um jantar de reencontro. Conseguimos juntar uma boa parte desse grupo tão diverso. Na verdade, mantemos o contato via WhatsApp até hoje. A tecnologia permitiu reunir, inclusive, aqueles que a vida levou para longe, fora do Brasil.

 

Na ocasião daquele jantar, em 2017, foi proposta uma dinâmica que consistiu em solicitar aos presentes que cada um revelasse algo importante da época em que estudamos sobre a pessoa que estava sentada do seu lado direito. Revisitamos memórias com narrativas que nos levaram às gargalhadas. Lembrar coletivamente tem um sabor diferente: é como se montássemos um quebra-cabeças a várias mãos. As peças são as memórias.

 

Contudo, quando chegou a vez da pessoa (agora, podendo livremente viver conforme sua orientação sexual) que estava ao meu lado, prestes a falar uma memória que guardava de mim, ele revelou que, no dia em que foi expulso de casa pelo pai, saíra decidido para a escola com intenção de se despedir de nós e dar fim à própria vida como alternativa para o sofrimento chegando às raias do desespero que experienciava. Foi quando ele me encontrou e eu o abracei. Decididamente, eu não lembrava o que havia dito para ele, mas ele guardou as palavras e o afeto que o trouxeram de volta daquele que seria o seu último dia.

 

Eu travei na mesa do jantar e não soube o que dizer imediatamente. Há horas em que só conseguimos falar com as lágrimas. Assim, choramos coletivamente com aquele amigo que, um dia, esteve em um sofrimento extremo e só estava revelando aquilo para todos nós muitos anos depois. Abraçamos. Declaramos amor a ele.

 

Sabe o que é mais interessante? Nunca o vimos triste na instituição. Era ele quem normalmente consolava os colegas. Ele sempre teve um superpoder: o de dissipar tristezas, fazendo piadas inteligentes, tornando as aulas mais divertidas. Raramente faltava, mas quando acontecia a ausência dele logo era sentida por todos, inclusive pelos professores. O mundo sem ele seria mais cinzento e ranzinza.

 

Naquele jantar, ele me ensinou como é importante sermos gentis com as pessoas, pois nem todo mundo revela o que está passando. Dor é como a digital ou a íris do olho: cada pessoa tem a sua, por isso mesmo precisa ser tratada sem julgamentos.

 

Hoje, revisito essa memória vívida, lembrando de um filósofo que discutiu a angústia humana, Soren Kierkegaard, o qual convida-nos a olhar para os infortúnios de um outro ângulo com fins de enfrentamento. Para ele, o sofrimento perde o seu caráter aterrorizante e ganha um sentido existencial porque potencializa uma compreensão da profundidade das coisas que acontecem em nosso entorno e, consequentemente, da compreensão de nós mesmo.

 

Comentando o sofrimento em seu nível mais hard, Kierkegaard chega ao desespero que consiste em um estado de consciência que julga uma situação sem saída. "O desespero mais comum é não escolhermos ou não podermos ser nós mesmos, mas a forma mais profunda de desespero é escolhermos ser outra pessoa ao invés de nós mesmos." - diz ele. Fico pensando no que significa sermos aquilo que não somos por força das circunstâncias.

 

Amar o outro como a si mesmo é um mandamento curioso. A depender do que a pessoa carrega como amor (ou talvez nem carregue), qual o parâmetro para amar (e respeitar) o outro? Aquilo que carregamos dentro de nós e oferecemos para o outro é o que somos.

 

Que nesta data de marco pelos direitos civis LGBT+ sejamos pessoas em encontros e abraços e não em encontros de despedida.

 

(Homenagem a Heinkell Huguenin e todas as pessoas LGBT+ na luta por direitos civis)

 

 


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