Théo Alves

31/01/2021 00h16
 
Sobretudo a vida
 
 
Não é novidade que a literatura de Juan Rulfo tenha me instigado a escrever muitas vezes. Citações de seu livro “Pedro Páramo”, por exemplo, são uma constante em meus trabalhos. Entretanto, hoje estava a folhear o livro “100 Fotografias”, que reúne parte importante de seu trabalho como fotógrafo. Assim como na literatura, as imagens de Rulfo se põem a revelar e encobrir um México para além do México a partir de sua arquitetura, de suas ruínas, de seu povo e do assombro da vida cotidiana.
 
Assim como a Rulfo, trabalhar literatura e fotografia são artes que me interessam profundamente. Inúmeras vezes pude encontrar a mim no que o autor mexicano de tão poucas publicações já escreveu, mas pasmo em saber que posso me encontrar também em suas imagens.
 
Tenho dito sempre que adoraria ser um fotógrafo de flores, pores-do-sol, luas e praias. Adoraria me interessar profundamente por registrar a beleza de todos esses elementos, que acho realmente bonitos e que me encantam como espectador. Mas, infelizmente, é apenas como espectador que eles me comovem, não como fotógrafo.
 
Lembro-me, por exemplo, de estar há alguns anos em um barco na cidade de Galinhos, uma espécie de pequeno paraíso do litoral potiguar, olhar ao redor e ter a sensação de que não havia nada que eu pudesse fotografar, senão pelos cachinhos ao vento de uma criança no barco. Disse em voz alta, quase sem querer, o que já havia pensado tantas vezes: o mar não me comove.
 
Que fique claro: o mar não me comove como fotógrafo, assim como flores, praias, luas e coisas do tipo também não. Deve ser mais um dos inúmeros defeitos de fabricação que tenho. 
 
O que me comove e me interessa como fotógrafo é o que me instiga e incomoda, como gente nas ruas, gente, ruas, espaços públicos, trabalho e trabalhadores, ruínas, lugares abandonados, enfim tudo o que é ou já foi humano, a denúncia e a beleza difícil das marcas de nossa humanidade. Por extensão, a dor e a inadequação contidas nessa humanidade é que me provocam. 
 
Deixo claro que não me interessa a exploração da miséria. São as pessoas e sua sobrevivência, sua força e como se negam a sucumbir, sua resistência que me instigam. Verdade é que há muita dureza nesses processos também e isso muitas vezes me devasta como humano. Partilhar dessa crueza é ser atingido por ela, ainda que de passagem. 
Vejo os mexicanos fotografados por Rulfo e penso nos trabalhadores das casas de farinha em Boa Saúde, cidade do interior potiguar. Os chinelos, a maneira de estar acompanhado, as expressões de estranhamento... de alguma maneira, encontro nos personagens de um México de 80 anos atrás nas ruas de hoje, em uma periferia da periferia de um Brasil periférico.
 
Sigo a viagem pelas cem fotografias de Juan Rulfo e penso que se ele tivesse se dedicado a fotografar os pores-do-sol, a lua e flores talvez tivesse fotografado ainda mais do que conhecemos de seu trabalho, mas sou grato outra vez ao brilhante e profundo escritor e fotógrafo que foi por não ter escolhido esse caminho, por me fazer companhia nessa lida com a arte e com o que há de mais humano nela, que é a subjugação da própria humanidade.
 
Eu gostaria de querer fotografar amenidades apenas. Mas não quero. Quando escrevo ou aponto a câmera em alguma direção, é sempre o que há por trás da imagem ou da palavra que me instiga, e o que há raramente oferece uma beleza fácil. Faz parte da vida. Aliás, é sobretudo a vida.
 

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).