Théo Alves

17/01/2021 09h20
 
2020 ainda não acabou
 
 
Desde que o confinamento muito mal feito no Brasil deu sinais de que, independentemente de orientações políticas, tinha caído por terra no último terço de 2020, mesmo sem o arrefecimento da Covid 19, tomei a decisão de não escrever mais sobre o assunto nesta coluna, afinal parecia um contrassenso estar escrevendo sobre algo que as pessoas escolheram relativizar ou até mesmo negar a existência. Contudo, o fato é que a pandemia, assim como 2020, ainda não acabou.
 
Para hoje, havia escrito uma crônica sobre o que nos remete ao afeto, as lembranças aconchegantes que podem ser despertadas por filmes, músicas, comidas e tantas outras coisas. É um texto de alguma doçura e um tanto de carinho com o que somos. Possivelmente ele estará nesta coluna virtual no próximo domingo, entretanto, me senti mal ao me recusar a falar do caos que temos enfrentado de novo, como foi no ano passado.
 
Os números da pandemia em nosso país continuam assustadores. Aliás, estão mais assustadores. Ainda assim seguimos agindo como se tudo já tivesse passado, a doença já tivesse tratamento efetivo, cura garantida, vacina, imunidade... o confinamento parece uma realidade cada vez mais distante, ainda que países na Europa, por exemplo, já tenham retomado decisões duras e amargas como o lockdown na Inglaterra ou o toque de recolher em Portugal, e nós aqui continuamos a ver esse espetáculo de horror como se fosse apenas uma ficção, uma distopia longe demais de nós.
 
Aqui são mortes e mais mortes num absurdo rolo compressor que devasta o país inteiro. As contaminações provocadas pelas aglomerações das festas de fim de ano arrombam as portas dos hospitais e multiplicam doentes pelos corredores e salas improvisadas por todo o Brasil. Mesmo com toda a subnotificação, 200 mil mortes parecem formar um número que já não nos assombra mais. Os velhos, as pessoas com comorbidades ou até aqueles com histórico de atleta não fazem mais diferença. 
 
Manaus é mais uma vez símbolo da incompetência, do descaso, da irresponsabilidade e da conduta criminosa com que temos tratado a Covid 19. A capital amazonense bate recordes diários de enterros, a rede pública de saúde está em colapso e a falta de oxigênio nas UTIs da cidade transformam salas de tratamento em câmaras de asfixia. Pacientes que já sofreram muito morrem sem poder respirar diante de médicos e enfermeiros impossibilitados de agir pela falta de condições em que se encontram. Mas não são apenas as vítimas da Covid 19 que estão morrendo sem conseguir respirar: todos os pacientes que precisam de oxigênio, de crianças a idosos, seja qual for a doença que os acomete, são sufocados cruelmente. A cidade é socorrida, mesmo com atraso, com o envio de cilindros de oxigênio por parte de artistas, da Venezuela e de quem mais pode ajudar, ou com a transferência de alguns de seus doentes para leitos em outros estados da federação. É dos espetáculos mais tristes e tortuosos que acompanhamos durante toda esta pandemia, por certo.
 
Enquanto isso, academias, lojas, cinemas e até escolas estão abertos ou planejam sua reabertura para breve, como se nada relevante estivesse acontecendo, como se todo o horror diante dos nossos olhos não tivesse peso algum sobre nós. O negacionismo, tão marcadamente bolsonarista, já não tem bandeira, ideologia ou cor partidária. Fingimos que nada está acontecendo e que a vida como a conhecíamos até março de 2020 ainda é algo possível. 
 
Temos sangue nas mãos, mas o enxugamos na toalha de mesa, por baixo dos olhares que fingem não ver, que se recusam, como um paciente muito doente que se nega a ir ao médico para não admitir sua doença.
 

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