Théo Alves

12/07/2020 00h04
 
Então, o novo normal
 
 
Depois de quase quatro meses de confinamento, em que nos perguntamos e tentamos inferir que mudanças a pandemia traria à normalidade, o Brasil começa seu retorno gradual às atividades que haviam sido suspensas. É preciso deixar claro que em muitos casos essa suspensão foi muito mais de direito que de fato. Porém, hoje é a normalidade o que nos importa.
 
Desde o começo da quarentena temos exercitado nosso pessimismo ou otimismo em várias escalas ao pensarmos quais aspectos se transformariam em nossa nova realidade. 
Muitos de nós acreditamos que as pessoas sairiam melhores deste isolamento, mais humanas, mais afetuosas e dedicadas ao outro, ao amor e carinho por aqueles de quem se viram obrigadas a se afastar. Acreditamos que as amizades e os laços familiares seriam intensificados e ladeados pelo cuidado com aqueles a quem amamos, bem como um senso mais profundo de coletividade. 
 
Muitos de nós previram uma mudança radical nos hábitos de consumo, já que a pandemia teria provado que ter dinheiro é pouco útil se não há onde gastá-lo. Vimos até quem, ingenuamente, apostasse numa espécie de “vírus democrático”, que infectaria ricos e pobres sem distinção. Obviamente essas pessoas esqueceram que as crises não igualam as classes, antes acentuam drasticamente as diferenças. Para comprovar isso, uma rápida olhada nos mapas de contágio e mortes por Covid 19 no Brasil mostrará a gigantesca diferença no número de mortos nas camadas mais pobres e menos assistidas da população. 
 
Também voltamos nossas intenções para o pensamento ecológico e os pensadores indígenas. Ouvimos atentamente o que estes têm a dizer, capazes de entender profundamente a relação ideal entre homem e natureza, que não deveriam ser discrepantes em momento algum. No fim das contas, temos visto o quanto as nações indígenas e povos quilombolas têm sido afetados pelo Corona vírus. Mesmo os índios mais afastados vêm sendo mortos por essa epidemia –os yanomami chamam essas doenças de xawara, ou fumaça de epidemia – como já haviam sido devastados pelo sarampo, varíola, gripe e tantas outras desde a aproximação dos brancos a partir de 1500. Além disso, vidas negras continuaram sendo tiradas tanto pela Covid 19 quanto pela polícia e por madames que habitam condomínios de alto padrão: a pandemia não evitou que crianças pretas fossem mortas em suas casas ou nos elevadores das casas de suas patroas brancas.
Apostamos na solidariedade como aspecto fundamental da mudança, dado que nossa vida é sobretudo coletiva, social. Percebemos o quanto precisamos uns dos outros para uma lida saudável física e emocionalmente. No entanto, muitos vestiram apenas o discurso para sair às ruas com qualquer desculpa e pelo mínimo motivo, sem querer admitir o quanto isso põe em risco não só a própria saúde, mas também a dos que permanecem confinados.
As propagandas dos bancos passaram a apontar para um novo futuro mais solidário, no qual as pessoas deveriam investir seu dinheiro para que pudessem ter tempo de estar com aqueles a quem amam. E como os banqueiros amam o dinheiro acima de tudo, os lucros dos bancos não foram afetados de maneira significativa e a solidariedade passou a figurar na proposta de divisão da pequena queda de faturamento com seus funcionários. Alguém consegue imaginar o Itaú e o Santander, por exemplo, chorando em casa pelo mínimo arranhão e seus lucros trilionários?
Na expectativa de que valorizaríamos mais a vida frente à iminência da morte, nossos governos propõem uma volta ao normal enquanto seguimos com mais de mil mortos por Covid 19 diariamente. Não há queda significativa, nem mesmo estabilidade, no número de vítimas fatais, e o discurso da valorização da vida sobre a economia parece ter ruído em todas as instâncias. Bares e restaurantes estão abertos e podemos beber nossos mortos in loco neste momento. 
Essas aglomerações em bares e shoppings têm sido vistas por todo o país e, ao que parece, ninguém estava nesses lugares pela essencialidade das atividades. Vimos até festas universitárias promovendo apostas para descobrir quem dos presentes seria contaminado primeiro. 
Banalizamos não apenas a morte, mas especialmente a vida. Neste momento nossa falsa solidariedade é apenas uma máscara no queixo de nossa maldade e mesquinharia, porque de fato a vida dos outros não nos importa e nossa necessidade imediata de satisfação na tentativa vã de preencher nossas existências miseráveis pesa mais que o apreço à vida de quem quer que seja. 
Fato é que perdemos a oportunidade de mudar o mundo terrível que construímos. Mais uma oportunidade, aliás. É claro que não há mudança profunda sem construção do caminho, da luta. E, ainda que essa oportunidade nos tenha sido forçada, não a aproveitamos porque nunca estamos prontos para nada. 
Este momento da pandemia, em que alguns países tentam se proteger de uma segunda onda enquanto nós alongamos e ainda surfamos na primeira, mostra que o nosso novo normal é nada mais que o nosso velho normal de sempre. Infelizmente.

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