Cefas Carvalho

11/07/2016 18h15

Há alguns anos o amigo Nelson Marques, militante apaixonado do Cineclube Natal me convidou para participar de um projeto bem legal, chamado "Sessão dupla" na qual eu e um punhado de gente bacana, todos cinéfilos, deveríamos escrever textos sobre filmes e seus remakes, sequencias ou paródias, enfim. Entre muitas possibilidades de escolha fiquei com resenha sobre filmes sobre Jesus, escolhendo dois que gosto muito, "Jesus Cristo Superstar e "A última tentação de Cristo".

E eis que após longo e tenebroso inverno, parte do projeto vem á tona. A Edufrn e Nelson Marques e Gianfranco Marchi os organizadores lançaram o livro digital "Sessão Dupla: o original e a cópia. O remake, a sátira, a paródia" na quinta-feira dia 30, às 18h30, no Mercado Cultural de Petrópolis. E há a promessa de que o livro em papel será lançado em breve pela Edufrn. Seguem aqui em primeira mão, as resenhas dos filmes para o projeto:

Sessão Dupla

Jesus Cristo Superstar (Jesus Christ Superstar), 1973, Norman Jewison, EUA; Jesus de Montreal (Jésus de Montréal), 1988, Denys Arcand, Canadá; Última Tentação de Cristo, A (Last Temptation of Christ,The),1989, Martin Scorcese, EUA.

Os três filmes, cada um de sua forma, tratam da conhecidíssima história de Jesus Cristo. No  primeiro, é feita uma releitura de sua vida em tom deliberadamente hippie. É uma versão para  cinema da ópera-rock de Tim Rice e Andrew Lloyd Webber, encenada na Broadway com  grande êxito. Jesus de Montreal apresenta a vida de cristo de forma indireta. É a partir da montagem ao ar livre da Paixão de Cristo por um jovem ator que a história se desenvolve  formando uma alegoria sobre religião e poder, atualizando de forma surpreendente a história  de Jesus Cristo. Por último, no filme de Scorcese, Cristo se autoproclama filho de Deus e suas pregações na Judeia, então colônia romana, chocam o governo, que decide se livrar dele. É um retrato mais humano de Cristo, incluindo até desejos eróticos por Maria Madalena. Na verdade é um dos mais sensíveis e respeitosos relatos do fundador do Cristianismo.

Jesus Cristo Superstar

Um ônibus caindo aos pedaços cruza o deserto israelense/palestino até chegar a uma série de  ruínas. Do veículo, sai um grupo de jovens, homens e mulheres, alegres e despojados, como um grupo mambembe. Ao som de uma guitarra, estilo rock progressivo, eles cumprem um ritual no qual vestem um deles como Jesus Cristo, num interlúdio para a teatralização que se seguirá dos últimos dias de Cristo.

Assisti a essa primeira cena de Jesus Cristo Superstar pela primeira vez aos dezesseis anos e ela teve sobre mim um impacto imenso, assim como a hora e meia seguinte. Até os dezesseis, quando a rebeldia inerente à adolescência batia à minha porta, e cinéfilo que já estava me tornando, pensava que filmes religiosos eram necessariamente como o Rei dos Reis (Nicholas Ray, 1962) ou o Jesus de Nazaré, de Franco Zeffirelli. Cabe uma explicação: até então não tinha visto o Evangelho Segundo Mateus, de Pasolini, Scorcese não havia feito o seu A Última Tentação de Cristo, muito menos Mel Gibson o seu A Paixão de Cristo. O fato é que, para mim, filmes sobre Jesus eram necessariamente reverentes e épicos.

Contudo, aquele musical mostrava o contrário: um Judas cerebral, digno e questionador. Uma Maria Madalena apaixonada (por Jesus), dotada de teor erótico e participativa. Apóstolos fracos e desinteressados. A história bíblica desconstruída, reavaliada, questionada e... curiosamente levada mais a sério que muitas outras versões "certinhas". Tudo embalado com melodias das mais lindas da história dos musicais, letras bem construídas e contestadoras e um “espírito hippie” que me encantava. Estava construído o mito cinematográfico, ao menos para mim.

Depois descobri que muitas outras pessoas amavam o filme como eu (embora igual número o odeie). O herói de Jesus Cristo Superstar, na verdade, é Judas. Vivido pelo ator negro Carl Anderson, é ele quem pontua a história, mostra as contradições de Jesus e, acima de tudo, vive seu próprio paradoxo em querer que Jesus liberte não a humanidade do pecado, mas o povo judeu dos romanos e, ao mesmo tempo, intui algo a mais (divino?) no amigo Jesus. Duas canções marcam esse paradoxo: Listen to me, cantada por Judas na primeira cena do filme após o prólogo e I don’t know how to live him, cantada por um Judas aos prantos após receber o dinheiro da traição e pouco antes de se enforcar. Desnecessário dizer que são duas das canções que mais amo na película, e que, de certa forma, semearam uma saudável contestação em minha alma.

Um capítulo à parte para Maria Madalena. Vivida pela cantora pop Ivonne Ellman (celebrizada pela linda If I can’t have you dos Bee Gees), a sua Madalena não é mera coadjuvante, como nos demais filmes sobre Cristo. Aqui, ela tem vez e voz, comenta seu próprio passado e analisa seus sentimentos ambíguos sobre Jesus (em I don’t know how to love you, em outra versão diferente da de Judas).

Registre-se que, em meio aos hormônios da adolescência, não escapei aos encantos do olhar doce e da morenice de Ivonne Ellman/Madalena, que tornou-se uma das minhas paixonites cinematográficas da época. Com tantas belas canções, letras questionadoras, um charme hippie irresistível, bastou assistir ao filme essa primeira vez para pressentir que o faria outras vezes mais, e que a fita entraria na minha vida. Dito e feito: até hoje Jesus Cristo Superstar é o filme a que mais assisti na vida (19 vezes, contadas e cantadas) e, confesso, mesmo na casa dos quarenta, como agora, de vez em quando ponho o DVD do filme para ouvir: “Hosana hey, sana sana sana ho, sana hey, sana Hosana. Hey JC, JC won’t you die for me, sana ho sana hey, Superstar. . . ”

Jesus de Montreal

Influenciado por Jesus Cristo Superstar, comecei a garimpar em locadoras e cineclubes mais filmes questionadores da religião. Nesse período, assisti ao simpático Godspell – A Esperança e o sofrível Je Vous Salue Marie, de Godard, que havia sido proibido nos cinemas num rompante ditatorial do então presidente José Sarney, pressionado pela CNBB. Foi quando começou o burburinho em torno de um filme canadense. Tendo causado furor no Festival de Cannes de 1988, Jesus de Montreal chegou aos cineclubes brasileiros sob uma aura de romantismo e mistério. Seria uma modernização da história de Cristo? Uma crítica ao cristianismo moderno?

De tudo, um pouco. Assisti ao filme em uma sessão única no mitológico Cineclube Estação Botafogo, no Rio de Janeiro, onde morava á época, e a experiência foi inesquecível. A trama do filme é extremamente simples: na Montreal contemporânea, um jovem e talentoso ator e diretor (Daniel, nome bíblico, não por acaso) é convidado pela Igreja católica a encenar uma versão da Paixão de Cristo que chame a atenção da opinião pública. Bem encenada, a peça se torna um sucesso, mas, começa a perturbar o idealista Daniel, cujo comportamento começa a se assemelhar ao de Jesus.

Há quem ache que as analogias são forçosas (Daniel destruindo um estúdio de gravação evoca Jesus contra os vendilhões do templo), mas o fato é que tudo é muito poético, muito suave, mais que isso, muito sincero. Essa sinceridade – que deixa o espectador na dúvida se o diretor quer louvar a ação cristã ou justamente criticá-la – tornaram, aos meus olhos, o filme inesquecível, e como trama ele se sustenta até o fim, ganhando um clímax na cena em que, “crucificado”, Daniel sofre um acidente que mudará o rumo do filme e provocará sua morte.

A cena final sempre me marcou muito: médicos levam partes do corpo de Daniel (coração, rins, córneas) para transplantes em pacientes que deles necessitavam. Mais que uma apologia da doação de órgãos, uma forma de mostrar que o “Jesus de Montreal” pôde ressuscitar. Analogia simples, bela e poderosa. Um filme que até hoje me fascina, com seu Jesus canadense frágil e honesto.

A Última Tentação de Cristo

Como devoto de Martin Scorcese desde que assistira a Taxi Driver e Touro Indomável, não foi fácil esperar pacientemente, em 1989, seu filme A Última Tentação de Cristo chegar aos cinemas brasileiros. Não existia mais censura institucional/governamental à época, mas os conservadores de plantão aliados à então terrível CNBB tentavam – como haviam feito com Je Vous Salue, Marie, de Goddard, anos antes – impedir que o filme fosse exibido. Eu e os amigos cinéfilos já estávamos com água na boca: um Jesus indeciso e humano (Willen Defoe, que dois anos antes explodira como o sargento bonzinho em Platoon), um Judas heroico ecom ares revolucionários, uma Maria Madalena promíscua, intensa (a belíssima Barbra Hershey, atriz que deu de presente o romance original a Scorcese quinze anos antes), trilha sonora de Peter Gabriel e de quebra David Bowie como Pilatos. E baseado num romance (que chegou ao Brasil pouco depois do filme) do grego Nikos Kazantzakis, de quem eu já havia lido Zorba, o Grego e O Cristo Recrucificado.

Até que o filme aportou nos cinemas brasileiros. A essa altura, eu já havia assistido a todos os filmes de temática religiosa a que tinha acesso (embora os clássicos O Evangelho Segundo Mateus e Madre Joana dos Anjos eu tenha assistido muitos anos depois) de forma que me sentia preparado para mais aquela experiência.

O filme dividiu a crítica e meus amigos cinéfilos. Críticas não faltaram: do sotaque nova-iorquino do Judas de Harvey Keitel até as longas quase três horas de filme. Para minha visão passional do cinema, gostei de tudo e o filme se tornou um clássico pessoal meu. O Jesus de Defoe, angustiado e nervoso, me convenceu. Assim como a cenografia árida e a fotografia em tons terra. Falar na trilha sonora de Peter Gabriel é covardia: para mim, é uma das maiores da história do cinema até hoje.

Porém, o trunfo do filme é a trama e sua narrativa: o Jesus de Kazantzakis (e Scorcese) é um pária entre os judeus, um carpinteiro que faz cruzes para os romanos crucificarem os judeus. Até que não consegue resistir (este é o termo) ao chamado de Deus e, após muita luta interior (incluindo a paixão carnal por Maria Madalena), decide cumprir a obra para a qual tinha nascido.

Claro que, já agonizante na cruz, há o sonho (ou possibilidade real?) de descer da cruz (afinal, era o filho de Deus, tinha poder para tal), casar com Maria Madalena, ter filhos e viver como um homem normal. Como ele sempre quis. No final, o sonho/possibilidade forjado pelo anjo/demônio se esvanece e Jesus percebe que terá que morrer para que se cumpra o que estava escrito. Tudo como tinha que ser, mas com muita agonia e batalhas interiores, como cabe aos personagens de Kazantzakis e Scorcese. “It’s acomplished!”, grita Cristo/Defoe. Consummatum est! Está consumado! Sobre a trilha sonora, a mais bela das músicas de Gabriel (compositor com nome do anjo que anunciou o filho a Maria. . .) e estava forjado mais um clássico religioso pessoal.

Nunca nenhum filme de tom religioso (não, não considero A Paixão de Cristo, de Mel Gibson tão bom assim) nem tão bom nem poético me afetou tanto como a trinca Jesus Cristo Superstar, Jesus de Montreal e A Última Tentação de Cristo. Filmes que levam à reflexão e que traçam um perfil de parte importante da mitologia judaico-cristã-ocidental. E, sim, não é preciso acreditar em deus (ou Jesus) para se amar estes filmes e se emocionar com a história. Em nome do cinema, amém!

Jesus Cristo Superstar. 1973. Direção: Norman Jewison; Roteiro: Melvyn Bragg e Norman Jewison, sobre o livro de Tim Rice; Produção: Norman Jewison, Patrick Palmer e Robert Stigwood; Desenho de produção: Richard Macdonald; Música: Andrew Lloyd Webber; Edição: Anthony Gibbs; Direção de arte: John Clark; Figurinos: Yvonne Blake; Elenco: Ted Neeley (Jesus Cristo), Carl Anderson (Judas Iscariotes), Yvonne Elliman (Maria Madalena), Barry Dennen (Poncio Pilatos); Musical, 103 minutos, cor.

Jesus de Montreal. 1988. Direção: Denys Arcand; Roteiro: Denys Arcand; Produção: Roger Frappier, Pierre Gendrou e Monique Létourneau; Desenho de produção: François Séguin; Música: Jean-Marie Benoît, François Dompierre e Yves Laferniére; Edição: Isabelle Dedieu; Figurino: Louise Jobin; Elenco: Lothaire Bluteau (Daniel), Catherine Wilkening (Mireille), Johanne-Marie Tremblay (Constance), Rémy Girard (Martin), Robert Lepage (René), Marie-Christine Barrault, Denys Arcand; Drama, 119 minutos, cor.

A Última Tentação de Cristo. 1989. Direção: Martin Scorcese; Roteiro: Paul Schrader, sobre o romance A Última Tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis; Produção: Barbara de Fina e Harry J. Ufland; Desenho de produção: Johan Beard; Música: Peter Gabriel; Edição: Thlema Schoonmaker; Direção de arte: Andrew Sanders; Figurino: Jean-Pierre Delifer; Elenco: Willem Dafoe (Jesus), Harvey Keitel (Judas), Barbara Hershey (Maria Madalena), Verna Bloom (Maria, mãe de Jesus), Harry Dean Stanton, David Bowie; Drama, 163 minutos, cor.


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