Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN. É escritora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus 2023 do MINC, na categoria Romance.
Em palanques e entrevistas, muitos governantes entoam promessas à educação, anunciando mundos e fundos em verbos bonitos. Mas o tilintar das palavras choca-se com o silêncio real — muitas bibliotecas estão desprovidas de acervo diversificado, sucateadas, fechadas. Salas de leitura são inexistentes, e milhares de mentes permanecem privadas da riqueza que um bom livro poderia oferecer.
No dia 1º de julho, celebra-se o “Dia Mundial da Biblioteca”, data instituída pela IFLA/UNESCO para destacar a importância desse espaço no acesso à informação e no desenvolvimento educacional e cultural. O que deveria ser uma oportunidade acessível ao conhecimento e ao encontro de nossos olhares e leituras de mundo, infelizmente, tem sido deixado às margens. Segundo dados do Censo Escolar de 2022 do INEP, 55% das escolas públicas sequer têm sala de leitura, e apenas 31% possuem bibliotecas — destas, somente 45% contam com um bibliotecário formado na área.
Embora a Lei 11.645/2008 exija a inclusão obrigatória da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as séries, passados 17 anos, ela segue mais desrespeitada que implementada. No fundo desse vazio aparente, emergem muitos agravantes: o esquecimento histórico sem acervo de literatura indígena, negra ou periférica. Silencia-se a pluralidade de narrativas, tornando o Brasil palco secular de uma voz eurocêntrica e segregadora.
O resultado? Pessoas negras e indígenas crescem sem se verem refletidas nos currículos escolares. O silêncio editorial fortalece uma narrativa única e excludente. Nos livros didáticos brasileiros, a presença de negros e povos indígenas é mínima: em geral, apenas 11% das menções existem — e, quando existem, surgem sob estereótipos racistas, representações subalternas e um viés sociocultural inferior, em mais de 72% das narrativas e atividades didáticas. Se a voz significa visibilidade, então a narrativa racista e excludente traduz uma violência étnica e epistemológica.
Quando programas reais de fomento ao livro e à leitura nas escolas — especialmente aqueles que promovem a diversidade — são ignorados, o dano é profundo: reforçam-se estruturas autoritárias de poder e desigualdade, validam-se preconceitos internos e adia-se o despertar crítico de futuras gerações. Pouco adianta defender a valorização da diversidade se o símbolo maior da leitura — a biblioteca — está esvaziado ou soterrado em poeira e descaso.
E por que essa discussão importa para a sociedade? Porque a leitura é base para uma identidade reflexiva e crítica. Célia Xakriabá e tantos outros pensadores indígenas nos lembram que a educação intercultural não é um favor — é reparação histórica, abertura para uma sociedade verdadeiramente plural.
É hora de confrontar os discursos com os fatos: sem investimento estrutural em bibliotecas, sem aquisição de acervos literários diversos e atualizados, sem formação de bibliotecários e fiscalização do cumprimento da lei, a promessa de educação inclusiva continua sendo um papel que nunca se transforma em realidade.
Pense em uma sala de leitura onde cada estudante encontre, lado a lado, Davi Kopenawa e Eliane Potiguara, Ailton Krenak e Conceição Evaristo, Daniel Munduruku e Márcia Kambeba, Kaká Werá e Djamila Ribeiro — vozes indígenas e negras contando outras versões da história e das culturas silenciadas. Já imaginou um projeto escolar em que a literatura negra e indígena provoque debates, rompe paradigmas patriarcais e desafie as normas e os cânones ocidentais?
O discurso contracolonial — que diverge do pensamento eurocêntrico e das normas da política neoliberal capitalista — precisa encontrar prateleiras reais: livros que falem de cada povo, para todas as pessoas sem distinção.
A ausência de bibliotecas não forma apenas analfabetos funcionais, mas também analfabetos críticos, incapazes de refletir sobre a própria identidade. Sem acesso a livros que ecoam vozes indígenas, negras, periféricas e femininas, uma geração inteira cresce sem se reconhecer. A invisibilidade vira norma, o silêncio torna-se regra, e o pensamento crítico permanece sufocado.
Em cada escola, a biblioteca deveria ser um tesouro existencial a ser descoberto, e não o “porão esquecido”. Bibliotecas não são depósitos de livros — são espaços de ampliação de consciência, de saberes em movimento, de encontros entre culturas. Cada livro ali é um território de resistência, um resgate histórico.
Cobramos dos governantes, que tanto falam sobre a importância das bibliotecas nas escolas, que cumpram o que dizem. Porque educação se mede pelo que se faz em prol da formação de leitores reflexivos, que respeitem a pluralidade, reconheçam a história e assumam o compromisso com cada sujeito, independente de sua etnia, classe ou origem.
Nesse sentido, uma escola sem biblioteca é uma sociedade sem memória — à beira de repetir as mesmas injustiças. Investir nela é permitir que a palavra pública deixe de ser apenas retórica e se transforme em novos saberes e práticas decoloniais, antirracistas e antipatriarcais. Quando não se investe em leitura decolonial, não se silencia apenas a voz — silencia-se a possibilidade de transformação social.
Convido você a se juntar a nós. Defenda e invista na literatura decolonial, que provoca reviravoltas conceituais e culturais, que enfrenta o fascismo disfarçado de dogmas sociais em nome do “progresso e desenvolvimento” de uma sociedade a cada dia esvaziada de humanidade e respeito à diversidade.
E, se achar pertinente, leve essa reflexão adiante. Cobre dos gestores escolares e municipais a criação e manutenção de bibliotecas vivas. Participe, se puder, dos conselhos escolares de seus filhos e netos. Incentive projetos de leitura decolonial. Plantemos juntos a palavra como uma semente de ação e transformação. Essa semeadura pode nos proporcionar bibliotecas com prateleiras mais repletas de conhecimentos — florescendo para o bem viver antirracista e para uma educação verdadeiramente intercultural.
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