Eva Potiguara

16/04/2024 09h39
 
NÃO COMEMORE O "DIA DO ÍNDIO"  
 
Quando, no século XVI, os brancos chegaram nesta Terra Pindorama chamada Brasil, o indígena foi estereotipado como um selvagem, um “bicho do mato sem inteligência”, “preguiçoso”, “canibal”, uma “alma perdida”, que mal servia para ser escravizado a serviço da Coroa. Até os seus religiosos da época concordavam em matar os nativos que resistissem às mudanças, contudo, podiam deixar viver as mulheres para servirem nos afazeres domésticos e/ou para serem abusadas pelos "homens de família" da Casa Grande. As crianças podiam “ser salvas” pela catequese e pelos ensinamentos da Igreja. Assim, em nome da Cruz e de Deus, muitos foram oprimidos sem direito à voz, nem a expressar seus sentimentos e as suas tradições culturais que, há milhares de anos, fizeram parte de suas vidas.
 
Os indígenas do Nordeste, cuja maioria segue em retomada ancestral, têm vivido dias difíceis. Os povos aldeados lutam pela homologação de suas terras; os não aldeados, pelo respeito e o reconhecimento de sua identidade ancestral. Além disso, muitas vezes, são humilhados, discriminados e perseguidos, juntamente com os parentes do contexto rural, por suas características físicas serem distintas do “índio estereotipado” nas literaturas didáticas e indigenistas convencionais.
 
Neste mês de abril, quero lembrar que a diversidade está ligada não apenas às diferenças físicas entre 304 etnias existentes no Brasil, que se deu a partir da mestiçagem, sobretudo através de crimes de estupros e abusos seculares sofridos por nossas mulheres, especialmente, do nordeste brasileiro. Fomos a primeira região a ser explorada e massacrada no início do século XVI pelos portugueses e holandeses.  Se nossa gente tem cabelos enrolados, peles mais retintas, ou mesmo outras peles muito claras e olhos claros, ocorreu porque somos povos vitimados pelas usurpações criminosas. Ainda assim, não deixamos de ser indígenas por isso, pois a nossa identidade vai além das aparências.
 
Após tantos genocídios ainda presentes, chegamos ao século XXI, Era da comunicação digital e veloz, das relações infláveis, da modernidade líquida, de uma humanidade cada vez mais consumidora e distante de sua conexão com a terra. 
 
A exemplo disso, onde estavam as manifestações populares quando o Senado Federal “rasgou” a Constituição desrespeitando o direito de estado democrático, para sancionar a lei do marco temporal? A lei não considerava a complexa diáspora que as diversas etnias sofreram por consequências dos crimes da invasão, e defendia que apenas deveriam ser demarcadas as terras dos povos indígenas que viveram nelas até 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.  Mesmo depois de ter sido julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, seis dias depois foi sancionada pelo Senado em 27 de setembro de 2023. Será que a sociedade que defende a sustentabilidade, entendeu o propósito do marco temporal?
 
Tudo isso foi parte de um verdadeiro “genocídio legislado”, como declarou a Deputada Federal Célia Xakriabá de Minas Gerais. Na prática, essa lei foi aprovada para “facilitar” o desmatamento dos biomas que ainda restam e dificultar a demarcação das terras indígenas, há décadas em processo de tramitação. O que importa é o “progresso” e pouco importa a crise climática, ou a luta pela vida no planeta porque a máquina colonial capitalista deve continuar devorando a natureza.
 
Por outro lado, a luta contra/colonial para os povos indígenas sempre foi árdua e dolorosa porque lhes faltam a estrutura de poder político e econômico que o estado brasileiro construiu sob as bases dos cinco séculos do colonialismo capitalista. Representantes e lideranças dos mais de 300 povos indígenas em resistência lutaram nas redes sociais e marcharam nas ruas em Brasília, enfrentando a pandemia de 2020 até 2023, pedindo pela derrubada do marco temporal. Juntamente com os seus filhos, adultos e idosos, enfrentaram os militares com cacetes, com as balas de borrachas e gases de efeito moral. Tudo foi transmitido pelas redes sociais, mas infelizmente os clamores dos primeiros habitantes desta terra, que lutam para manter as florestas de pé com as suas próprias vidas, seguem ignorados por grande parte dos políticos da direita e extrema-direita, apoiados por uma parcela da sociedade brasileira.
 
Os povos originários tiveram que esperar quase cinco séculos para serem reconhecidos com os mesmos direitos humanos dos cidadãos brasileiros na Constituição de 1988. Nesse documento, foram também reconhecidos os saberes tradicionais e pluriculturais dos povos indígenas.  Ainda assim, os livros didáticos e indigenistas mantêm a alcunha "índios", quando fazem referência aos povos originários, termo dado por Américo Vespúcio ao invadir nossa terra e equivocadamente acreditar que havia chegado às Índias.
 
A modificação etimológica foi reforçada pelo Senado Federal em 2021 a pedido da Deputada Federal Joenia Wapichana, ocasião na qual solicitou que o "Dia do Índio" fosse mudado para "Dia dos povos indígenas do Brasil", 33 anos depois da promulgação da Carta Magna de 1988. Essa mudança foi fruto da luta dos povos indígenas do Brasil, que por muitas décadas criticavam o fato de serem nomeados com um termo pejorativo, o qual não respeitava a diversidade cultural e sócio-histórica dos povos originários.
 
Concordo com o parente Edson Kayapó, historiador e doutor em educação, que a nomeação do filósofo e escritor Ailton Krenak como primeiro indígena na Academia Brasileira de Letras (ABL) subverteu a representação indígena subalterna e folclorizada na literatura e nas artes que marca o Brasil desde a invasão dos portugueses até agora.
 
No dia de sua posse, o parente Ailton Krenak perguntou se naquela cadeira 11 que ele ocupava, caberia mais 303. Ele se referia ao número de povos indígenas ainda presentes em resistência no país. Isso causou uma comoção de muita gente ali presente, e dos milhares de internautas que assistiam à posse do primeiro indígena na ABL. Este evento da ocupação indígena na ABL significa não só uma reparação histórica como também representa um avanço muito grande no reconhecimento dos saberes e das formas próprias de organização e das cosmologias dos povos originários. “Os tempos de Iracema e Pocahontas, esse romantismo que fez um desserviço para os nossos povos indígenas na literatura clássica, definitivamente vai ser rompido com as vozes silenciadas historicamente que hoje fazem parte da ABL”, afirmou o parente Kayapó, que é também premiado pela UNESCO.
 
E agora direciono essa conversa aos educadores que pretendem promover processos de aprendizagem contra/coloniais, ações educativas que diluam paradigmas coloniais racistas em seus ambientes de ensino.  Vou sugerir algumas formas simples de mediações pedagógicas, partindo de minha própria experiência em sala de aula na educação básica e no ensino superior.
 
Primeiro, invista em literatura indígena escrita por autoras e autores contemporâneos que destacam a diversidade das nações originárias dessa Terra Pindorama chamada Brasil.
 
Em seguida, pesquise a presença de povos indígenas em seu contexto social e planeje com eles entrevistas, visitas às aldeias e busque conhecer suas lutas atuais, reivindicações sociais, políticas, de saúde e de educação. Se possível, traga para a sala de aula, indígenas aldeados e/ou em contexto urbano para serem ouvidos pela comunidade escolar. Não se condicione a fazer ações em prol da cultura indígena apenas por ocasião de datas comemorativas. Os povos originários são vítimas de muitas violências seculares aos direitos humanos e rejeitam meras apologias sem sentido.
 
Em vez disso, invista numa prática constante de educação Intercultural e pluricultural. Essa é uma forma viável para um processo de construção contra/colonial ainda imerso no analfabetismo cultural.
 
Ser indígena não é folclore, não é um mito genérico perdido na mata.  Há etnias, idiomas, múltiplas culturas e diferentes modos de ser e de sentir, de hábitos e costumes, sejam artísticos e/ou sagrados, que devem ser respeitados e reconhecidos como patrimônios próprios de cada povo.
 
É inegável a emergência de fomentar novos olhares críticos e reflexivos a respeito dos povos indígenas, para evitar a manutenção dos estereótipos racistas que ofendem e desvalorizam a diversidade antropológica e espiritual dos povos que, há mais de 500 anos, sofrem perseguições e usurpações de seus corpos/territórios.  É inaceitável que, em pleno século XXI, o etnocídio, que se configura a morte da identidade do sujeito, ganhe espaço.
 
Em função disso, é fundamental quebrar os estereótipos de que indígenas têm que ter pele vermelha e cabelo liso. Como já enfatizei, o fato de os povos indígenas do Nordeste brasileiro, e aqui destaco o Rio Grande do Norte, terem mulheres e homens indígenas de cabelos enrolados, peles mais retintas, outras peles muito claras e olhos claros, está relacionado às consequências de usurpações criminosas que sofreram ao longo de mais de cinco séculos. A identidade indígena vai além das aparências.
 
Ser indígena é uma imersão de corpo e espírito. Nesse sentindo, a corporeidade se confronta diariamente com o racismo estrutural, com as desigualdades sociais e as injustiças seculares que sufocam com rótulos de pardos, negros e/ou mestiços.
 
Se realmente a sociedade deseja investir em uma educação de rupturas racistas coloniais, sugiro, por fim, que sigam as redes sociais de articulação nacional dos povos indígenas, como a @apiboficial, a @apoinme_brasil, a @coiabamazonia, a @anmigaorg, o @mulheriodasletrasindigenas, entidades sérias na luta contemporânea dos indígenas do Brasil. 
 
Todas essas são formas de respeito a nossa diversidade. Fazendo isso, vocês respeitarão os ancestrais e as memórias dos povos indígenas, dando um basta na opressão que ainda hoje os povos originários sofrem.
 
 
Aûîébeté! 
Xe re ra morombo'esára Eva Potiguara. 
@evapotiguara 
 
#leiamulheresindigenas
#obrasiléterraindigena 
#rnéterraindígena
 
Sobre a autora
 
Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes Visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN, é Professora e pesquisadora do IFESP-SEEC, atuando nos cursos de Pedagogia e Letras. É produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, membro da UBE/RN, da SPVA e de várias academias de Letras no Brasil e em Portugal. Tem livros solos infantis e de poesia, publicados no Brasil e em Portugal. Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Maria Carolina de Jesus 2023, na categoria Romance.

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).