Andreia Braz

11/07/2020 11h47
 
Lições de vida
 
 
Minha casa fica numa avenida supermovimentada e, por isso, muitas vezes, tenho de atender diversos tipos de transeuntes, alguns pedintes, outros vendedores de alimentos, de produtos de limpeza etc. Outros, ainda, passam na porta oferecendo seus serviços como diarista, jardineiro. Na maior parte das vezes, faço questão de ajudar, mesmo que não esteja precisando daquele serviço ou produto. Vejo o esforço dessas pessoas e sua dificuldade para garantir a sobrevivência. Afinal, se estivesse no lugar delas também gostaria de ser ajudada. Outro dia, por exemplo, comprei um gel para massagem corporal que ainda não tive oportunidade de usar. A satisfação da vendedora, expressa em palavras de conforto espiritual, no entanto, compensou tal negócio. 
 
Confesso que às vezes a falta de sossego me chateia um pouco, sobretudo quando estou trabalhando ou escrevendo. Mas esse não foi o caso de uma moça simpática que passou outro dia vendendo tapioca. Era um final de tarde e eu estava me preparando para retomar a revisão de um livro quando escutei alguém batendo palmas, o que me fez presumir que era um desconhecido oferecendo algum produto ou mesmo pedindo ajuda. Fui até o portão verificar de quem se tratava. Ao me ver, a jovem foi logo anunciando seu produto e dizendo que as tapiocas eram molhadas no leite de coco. 
 
Perguntei o preço da tapioca e em seguida fui buscar o valor pedido. Na volta, não pude resistir ao sorriso e ao olhar observador da criança que a vendedora trazia consigo, um menino que deveria no máximo três anos de idade. Perguntei seu nome e ofereci-lhe um lanche. Seus olhos brilharam ao ver o pacote de biscoitos de morango. A embalagem amarela certamente deve ter chamado sua atenção. O sorriso dele era um misto de surpresa e alegria. Mãe e filho começaram a degustar os biscoitos ali mesmo no portão. Perguntei se ela gostaria de entrar para que pudessem lanchar tranquilamente. Assim que entraram, a moça foi logo sentando no chão e convidando o filho para fazer o mesmo. Não resisti a fazer o mesmo e juntei-me aos dois.
 
Observei com atenção a felicidade do menino ao saborear alguns biscoitos e um copo de iogurte, também de morango. Naquele momento tive certeza de que a felicidade realmente está nas pequenas coisas. Sei que, para muitos, essa afirmação é um clichê, mas para mim é uma filosofia de vida. 
 
Com cinco meses de gravidez, Camila não tem trabalho fixo e sobrevive com a venda de tapiocas e ajuda da família. Queixava-se das pouquíssimas vendas feitas no meu bairro, onde não costumava vir com frequência. Não vendera quase nada naquele dia. Além de comprar as tapiocas, ofereci uma pequena ajuda para a passagem de ônibus e para que pudesse comprar algum alimento para seu filho no dia seguinte. 
 
Ao contar um pouco de sua situação financeira e das dificuldades que ela e o marido estavam enfrentando, disse que estava tentando tirar a carteira de trabalho para se inscrever no Bolsa Família. O esposo, 19 anos, também está desempregado. “Ele terminou o ensino médio e está entregando currículos. Ainda não conseguiu trabalho”, disse em tom pesaroso.
 
Perguntou-me se eu tinha filhos ou conhecia quem tivesse criança pequena, na intenção de conseguir alguns artigos para o enxoval do bebê. Falou da solidariedade das mães em sua primeira gestação. “Ganhei quase tudo quando estava grávida de Kauê, mas hoje as pessoas não querem ajudar muito, estão vendendo as coisas dos bebês”, disse um pouco ressentida. Prometi um pacote de fraldas e uma roupinha para sua filha. Pedi que viesse buscar no final do mês. Além disso, vou tentar arrecadar algumas coisas com amigas que têm filhos pequenos ou bebês. 
 
Pouco tempo depois que Camila foi embora, chegou seu José, um carroceiro que sempre pede roupas e calçados na minha rua. De imediato, não o reconheci porque não estava em sua carroça de burro. Dessa vez chegou em uma bicicleta, que ameaçava pender para um lado de tanto peso que carregava. Contou-me que seu burro havia morrido, que estava pensando em adquirir outro, mas temia a fiscalização. “Tenho medo de perder tudo, minha filha. Por enquanto, vou pedindo na bicicleta mesmo”, desabafou. 
 
Quando, finalmente, retomei minhas atividades revisórias, não pude deixar de refletir sobre as lições que aprendera naquela noite... Camila e seu José talvez nem imaginem o quanto me ensinaram e o quanto sou grata por tê-los recebido em minha casa. Cada um deles, lutando ao seu modo para sobreviver, ensinou-me valiosas lições: a importância de alegrar-se com as pequenas coisas, o valor da simplicidade, e aquela que jamais quero esquecer: sempre é possível ajudar, sempre é possível dividir o que se tem. Acho que a gente não deve ter medo de que nos falte algo porque estamos partilhando com alguém um pouco da nossa comida, das nossas roupas, ou que quer que seja que possa diminuir o sofrimento de alguém, mesmo que momentaneamente. Afinal, há certas necessidades que são urgentes, e a fome é uma delas. 
 
Essa experiência me fez lembrar um valioso ensinamento do mestre Rubem Alves: “Pela magia do sentimento de solidariedade, meu corpo passa a ser morada de outro. É assim que acontece a bondade”. Para ele (e agora também para mim), a solidariedade é um sentimento que nos torna humanos, uma forma visível do amor.
 

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