Eva Potiguara

Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN, é Professora e pesquisadora do IFESP-SEEC, atuando nos cursos de Pedagogia e Letras. É produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, membro da UBE/RN, da SPVA e de várias academias de Letras no Brasil e em Portugal. Tem livros solos infantis e de poesia, publicados no Brasil

Quando a Palavra se divorcia do Império Colonial

15/05/2025 13h46

 

 

Neste tempo em que o mundo parece desmoronar sob as ruínas do próprio ego, a poética contracolonial nos aponta outra direção: escrever como quem semeia, como quem canta, como quem sonha a cura de uma terra ferida. Ela não se trata apenas de um movimento estético — ela é um gesto político de reapropriação do mundo e da vida que se move em teimosia por liberdade. 

 

Em vez de repetir os moldes da literatura ocidental, centrada na razão, no eu, na linearidade e na padronização linguística, ela brota da pluralidade dos territórios, da circularidade do tempo indígena, da experiência coletiva e espiritual dos povos originários. É um modo de escrever o mundo com os pés descalços na terra e o coração pulsando no tambor da ancestralidade.

 

Essa poética que diversos poetas indígenas como eu, assumiu a função de escriba, rompe com os cânones ocidentais, porque recusa a hierarquia das formas literárias consagradas. Rejeita o “português correto” como única via de legitimidade textual. Reivindica, no lugar disso, uma linguagem viva, que pulsa no corpo, nos mitos, nas oralidades, nos cantos. Uma linguagem que não teme ser híbrida, sincrética, grafada pelas cores dos territórios ancestrais, pelas vozes das mulheres, dos homens, das árvores,  do fogo e do sangue que esculpido nas pedras. 

 

Nesta escrita, não há submissão ao discurso colonizador. Há re-existência. A poesia ss torna caminho de cura e afirmação de um pertencimento coletivo que foi historicamente negado. É um “contrafeitiço” à gramática da dominação.

 

A poética contracolonial de poetas indígenas contemporâneos como Eliane Potiguara, Márcia Kambeba, Truduá Dorrico e Ellen Lima Wassu, desfaz o mito da universalidade estética. Enquanto a tradição eurocêntrica proclamava uma literatura universal (quase sempre branca, masculina e urbana), a palavra originária é situada: nasce do Cerrado, do Mangue, da floresta, da aldeia, das periferias. Ela se ancora no chão de Pindorama — não como exotismo, mas como epistemologia viva e livre. 

 

A metáfora de “aldear a literatura”, um termo que tenho bastante usado nos últimos três anos, resume bem essa transformação: não é apenas incluir indígenas na literatura, mas reinventar a própria noção de literatura a partir das epistemologias indígenas. Isso implica redimensionar o que entendemos por estética, autoria, estilo e até mesmo por “beleza”.

 

A escrita contracolonial é, portanto, profundamente libertadora porque permite que cada povo, cada corpo, cada idioma ferido possa novamente se expressar sem precisar pedir permissão à lógica do colonizador. É uma escrita que não obedece à norma culta, mas à sabedoria do corpo e do tempo ancestral.

 

Em “Não era uma vez”, um poema que escrevi que nasceu para subverter a tradicional fórmula dos contos de fadas — “era uma vez” — veio para revelar o genocídio histórico que fundou o Brasil:

 

“Eles morreram lutando, tombaram sob as armas de fogo.

Os seus filhos foram escravizados,

Suas filhas raptadas e abusadas.”

 

Aqui, o verso não é decorativo. É denúncia e documento poético. A contracolonialidade emerge como gesto de memória e também como profecia: estamos vivos, resistimos e não seremos calados.

 

Por isso, a poética contracolonial se torna também um campo de batalha simbólico, onde a língua se rebela contra sua função colonizadora, ou porque não dizer, como  “Tijolos Ancestrais”:

 

“Do barro da Terra Mãe

Cada povo se recria

Entre pisadas e rodeios,

Moldamos com cantoria”

 

Nestes versos do Poema “Tijolos ancestrais”, a imagem do barro que busquei,  foi a fusão entre criação artística e território, entre o fazer e pertencer. O barro aqui não é apenas matéria-prima; é história, é identidade moldada com os cantos de quem vive à margem dos centros de poder, mas se ergue marginalmente no centro da vida.

 

E assim, com versos como flechas, a literatura contracolonial abre clareiras no mato fechado da academia, da crítica literária oficial, dos livros didáticos monocromáticos. Ela não pede apenas lugar, mas finca o pé, planta sua língua, e floresce.

 

Enquanto muitos adeptos da  literatura ocidental cultuam a estética do eurocentrismo, as escritoras e escritores dos povos originários reencantam a palavra com a inspiração contracoloniai do corpo/território que os movem como uma profecia que evoca: 

 

“Que os livros nos livrem

 

De nossa vertigem

[…]

E livres,

Livremos!”

 

 

Eva Potiguara 

 


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