Eva Potiguara

Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN, é Professora e pesquisadora do IFESP-SEEC, atuando nos cursos de Pedagogia e Letras. É produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, membro da UBE/RN, da SPVA e de várias academias de Letras no Brasil e em Portugal. Tem livros solos infantis e de poesia, publicados no Brasil

AS VOZES QUE DENUNCIAM O COLONIALISMO CONTEMPORÂNEO

17/04/2025 11h09

Há vozes que o tempo não cala, mesmo quando o concreto sistema capitalista colonial tenta abafar os filhos da terra.

Quem acompanhou neste início do mês de abril as vozes e os passos firmes do Povo Munduruku no sudoeste do Pará sobre a BR-230 de Itaituba, deve ter percebido que  foram atos de resistência e luta contracolonial.

Durante catorze dias, sob sol e chuva, homens e mulheres da etnia Munduruku estiveram não apenas bloqueando uma rodovia, mas escancarando uma ferida que o Brasil insiste em esconder sob o manto da insaciável modernidade do consumo.

O bloqueio, como bem disse a liderança Alessandra Korap, só teve efeito quando mexeu com o bolso do agronegócio. Esse é o retrato mais cruel da equação que move o país: a dor indígena só é ouvida quando interfere na balança comercial. Foi preciso parar carretas para que a marcha do esquecimento se interrompesse, para que, enfim, o Ministro Gilmar Mendes abrisse as portas do Supremo a quem nunca saiu das raízes do território.

Mas o encontro no STF desta terça-feira (15/04) não trouxe respostas, apenas promessas voláteis. A conciliação proposta pelo Tribunal soa como um espelho quebrado: tenta refletir justiça, mas distorce as imagens da realidade. Os Munduruku entregaram uma carta ao ministro e foram claros: -”não aceitamos negociações feitas sem a nossa presença, sem consulta livre, prévia e informada".

A proposta de Gilmar Mendes da Lei 14.701/23 que surge do para substituir o Marco Temporal, decisão já considerada inconstitucional, vem com ares de barganha: extingue-se o absurdo, mas impõe-se obstáculos ainda mais crueis. Indenizações para invasores, autorização para empreendimentos em terras indígenas sem consentimento, e até o uso da Polícia Militar contra retomadas legítimas. É o avanço do colonialismo com nova roupagem, agora assinada em gabinetes com ar-condicionado e distantes do cheiro da mata.

As reivindicações feitas na carta dos Munduruku, a Convenção 169 da OIT garante e a Constituição de 1988 também garante, mas quando se trata dos povos originários, o Estado brasileiro sempre parece disposto a reinterpretar as leis para proteger a propriedade privada em detrimento da vida coletiva dos povos indígenas.

Os Munduruku, com coragem ancestral, lembram ao Brasil que nenhuma democracia é completa enquanto povos indígenas forem excluídos dos espaços de decisão que dizem respeito às suas vidas. A conciliação imposta pelo STF, sem paridade, com maioria pró-agronegócio, revela o que muitos já sabem: não há vontade política real de reparar os séculos de expropriação e genocídio.

Todos  aqueles que tiveram acesso às manifestações do povo Munduruku nestes últimos dias pelas redes sociais, são capazes de sentir, ou perceber tais injustiças em nome da ganância. Talvez muitos leitores deste texto compreendam a nossa dificuldade de ignorar esses estes crimes recorrentes. 

A nossa escrita traz as vozes silenciadas pelas  mídias e  ignoradas por aqueles que estão no poder legislativo, executivo e judiciário. Pode parecer repetitiva a nossa argumentação, mas não é possível desviarmos destes fatos que ferem os direitos humanos dos povos originários prescritos na Constituição de 1988. A justiça está bem exposta na carta magna, mas o seu cumprimento na realidade, é mera ficção quando se trata do respeito aos direitos legítimos de cada povo originário ao seu território.

As belas propagandas sobre “Ser cidadão”, destacam: é ter autonomia sobre aquilo que lhe pertence por legado sócio histórico e direitos constitucionais.  Mas isto é negado aos indígenas quando suas terras são invadidas para interesses comerciais de empresários do agronegócio, para fins do contrabando de madeira nativa, para o garimpo ilegal, entre outras atividades de exploração dos recursos naturais. E tudo isso acontece de forma visível, na maioria das vezes sem nenhuma interferência dos órgãos de segurança local. 

Quando ocorrem mortes de indígenas em confrontos com grileiros, fazendeiros e garimpeiros armados, raramente as imagens são divulgadas, mas se um grupo de um determinado povo originário bloqueia uma BR, na tentativa de ser ouvido pelos órgãos de justiça, os manifestantes sofrem ameaças de morte, agressões físicas e ainda são chamados de vagabundos por jornalistas da extrema direita e pelos criminosos das fakenews das mídias digitais. 

As vozes de resistência dos povos indígenas é também resistência atemporal, porque carregam um passado e um presente que o Brasil ainda não aprendeu a respeitar. Eles não clamam apenas por suas terras, mas pelos rios que precisam correr livres, pelas árvores que não podem virar pasto, pelas crianças que merecem crescer ouvindo histórias na sua língua, e não  alertas de despejo por mandados de reintegração de posse. Os Munduruku não pedem favores ao STF. Exigem respeito. Não querem migalhas, querem o que é seu por direito. A terra, a dignidade,  o futuro.

E assim, os Munduruku no interior do Pará e os demais 304 povos indígenas do Brasil, seguem na resistência  visceral e são capazes de morrerem lutando. Esta postura matriarcal, é um princípio básico de todo povo originário, pois morrer sobre o solo que lhe deu a vida e alimentação, é honrar com dignidade a condição de serem filhos da Terra e combaterem a visão colonial capitalista que a considera apenas mercadoria para fins de lucro e poder.

E como dizem meus parentes em luta: - Diga ao povo que marche!


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