Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
Origens controversas da dança do ventre
Cruz e Sousa escreveu um soneto intitulado Dança do Ventre. No poema, ele ressalta os movimentos sinuosos e associa a dança à luxúria, chegando a se referir a ela como macabra. Embora goste muito da poesia desse precursor do Simbolismo no Brasil, não poderia deixar de comentar essa ideia de luxúria que andou por muito tempo associada a esse estilo.
Até 20 anos atrás, vigorou a ideia de que a dança do leste, como também é conhecida, surgiu há 8.000 anos a.C. como uma performance sagrada, praticada por sacerdotisas e, posteriormente, por todas as mulheres da Mesopotâmia. Em outras palavras, supostamente estaria ligada aos ritos religiosos, direcionados à Deusa-Mãe. Essa linha teórica incluía o Antigo Egito, a Babilônia, a Síria, a Índia, a Suméria, a Pérsia e a Grécia como culturas que, além de rito religioso, utilizavam-na para preparar as mulheres à maternidade.
Se servir de consolo, leitores e leitoras, eu também já acreditei nessa narrativa. Esse texto, entretanto, não pretende apagar as manifestações da dança na Antiguidade, mesmo porque a dança acompanha a humanidade desde o tempo das cavernas. Antes mesmo de falarmos ou de escrevermos, fizemos do nosso corpo linguagem da mais antiga expressão artística de que se tem notícia. A questão em discussão é a origem da dança do ventre.
Em pesquisa recente, uma nova visão sobre essa dança surge como resposta acerca de suas origens. A Raqs Sharqi (do árabe, Dança do Leste) passou a ser chamada dança do ventre por possuir elementos de outras culturas e sua origem estar associada a um processo de ocidentalização, conforme a pesquisadora Heather D. Ward, na obra Egyptian Belly Dance in Transition: The Raqs Sharqi Revolution, 1890-1930. (Sem tradução no Brasil).
A pesquisadora realizou investigações in loco, no Cairo, trazendo novidades sobre o surgimento e o desenvolvimento da rags shargi, na virada do século XIX para o XX, mais precisamente entre a Primeira e Segunda Guerra Mundial, já que sua real origem foi obscurecida pela desinformação e pelas conjecturas, ou mesmo pelos registros de visão eurocêntrica feitos pelos pesquisadores que estiveram no Egito em 1798, apoiados por Napoleão Bonaparte.
Há de se mencionar que, dentro dessa visão eurocêntrica sobre a cultura do Médio-Oriente, o Orientalismo, temática artístico-cultural da Europa que esteve em vigor do século XVIII até o XX, retratou os orientais com as lentes do colonizador - situação que compromete a qualidade dos registros.
Edward Said, pesquisador árabe da Universidade Columbia, questionou por que, quando falamos no Médio-Oriente, temos uma ideia pré-concebida, estereotipada e distorcida das pessoas que vivem lá; o que não corresponde à realidade, mas sim a uma visão nada objetiva e tampouco inocente, resultado de um processo que reflete interesses imperialistas. Sua contribuição está na obra Orientalismo, a qual nos convida a reparar essas visões pré-concebidas que mascaram a xenofobia e a intolerância. O autor foi motivado a escrevê-la ao ouvir comentários tque a mídia emitia sobre o mundo árabe na ocasião do conflito árabe-israelense de 1973.
Ainda bem que temos a possibilidade de reparação. É o que faz a nova teoria levantada pela norte-americana, quando esclarece o fato de a dança do ventre ter sido uma resposta às influências e aos desejos ocidentais, solidificando-se mais recentemente, a partir do surgimento dos grandes cassinos cairotas no momento de ebulição entre guerras. No referido recorte histórico, a dança do ventre foi criada para entreter os frequentadores do Cairo nessa época.
A dança tal como conhecemos hoje é executada como performance híbrida, fruto de uma junção do estilo que era dançado nas ruas do antigo Cairo pelas ghawazee, cigana egípcias de origem incerta (Turquia? Pérsia? Índia?), e pelas awaleem, artistas, bailarinas e musicistas educadas nas artes. Algumas danças ocidentais se uniram a essa pluralidade, com objetivo de cair no gosto dos ocidentais que frequentavam os grandes cassinos cairotas no período entre guerras.
Resta dizer que, enquanto expressão do povo, ela passa a ser espelho da cultura egípcia, concomitante ao período de busca pela formação de identidade nacional no final do século XIX, quando o Egito foi ocupado pelos britânicos - Uma forma de resistência à colonização, na medida em que buscou preservar elementos culturais locais.
A mudança do nome para o termo atual (dança árabe, ou dança oriental árabe) se deu, devido às bailarinas de tradição árabe acharem inadequado serem valorizadas apenas por uma parte do corpo, o que pode acabar resultando numa visão simplista desta dança que movimenta o corpo inteiro, valorizando mãos e braços, bem como movimentos de cabeça, tendo o cabelo como elemento principal.
Atualmente, existem três escolas cujos estilos são mais estudados: a Escola Egípcia conhecida pelas manifestações sutis de quadril, domínio de tremidos, deslocamentos simplificados adaptados do Ballet Clássico, movimentos de braços e mãos simplificados; a Norte-americana com manifestações mais intensas de quadril, deslocamentos amplamente elaborados, movimentos do Jazz, utilização de véus em profusão, movimentos de mãos e braços bem explorados; a Libanesa: com shimmies mais amplos e informais, seguidos de deslocamentos simplificados.
No Brasil, tradicionalmente, os estilos mais dançados são o egípcio e o libanês. Na realidade, o estilo brasileiro é híbrido. Para fins de estudo e repertório, a dança do ventre no Brasil mescla movimentos, revelando-se ousados, comunicativos, bem-humorados, ricos e claros no repertório.
No contexto do Rio Grande do Norte, a primeira escola de dança do ventre e folclore árabe é a Tuareg Kasa do Oriente. A proprietária, professora e bailarina, é Michelle Santiago, conhecida no meio artístico como Nuriel El Nur, bailarina desde 1994. Advogada de formação, deixou o escritório para abraçar a dança, abrindo a sua escola em Natal no ano de 1999, tornando-se a pioneira nesse estilo. Possui o selo de honra Lulu Sabongi, foi a primeira na Região Nordeste a integrar o quadro de bailarinas “Noites no Harém” da Khan El Khalili em 2006, e tem experiência internacional, ministrando workshop e participando de shows.
“Primeiro eu me encantei. Fui convidada para fazer dança flamenca e, chegando ao local, descobri que era dança do ventre. Conheci e estudei as bailarias libanesas. Também os estilos das bailarinas brasileiras Lulu Sabongi (uma referência para mim e com quem tive aulas), Soraia Zaied, Nájua, Claudia Cenci.” - rememora a bailarina.
Além dela, sua sobrinha, Lara Santiago, é professora e coreógrafa, também com padrão de qualidade Khan El Khalili. Educadora física de formação, foi finalista do primeiro Belly Dance Factor, 1º lugar no Festival Shimmie Recife e 3º lugar no Festival Shimmie nacional, nas categorias solo profissional e solo folclore respectivamente.
Nesta sexta (20), Lara completa 21 anos de dança. Na ocasião, será realizada uma mostra de dança com apresentações de solos e coreografias inéditas das bailarinas. Também estarão presentes escolas convidadas – algumas delas fundadas por ex-alunas/alunas da Tuareg – tais como a Companhia All Hanna, Oásis de Ísis, Evidance. Nesse dia festivo, Mahaila El Helwa (SP), convidada especial, dividirá o palco com Nuriel e Lara, anfitriãs do evento.
Mahaila já percorreu o mundo, levando a dança do ventre com um toque brasileiro, por meio de shows e de workshops. É uma das bailarinas brasileiras de maior sucesso na atualidade.
O figurino da Tuareg Kasa do Oriente é assinado por Mônica Santiago, irmã da proprietária, responsável por dar um toque criativo, colorido e belo aos espetáculos no RN, enviando também para companhias de dança pelo Brasil afora, ou mesmo para além de nossas fronteiras.
Que me perdoe Cruz e Sousa, mas a dança do ventre é como olhar um coração batendo em oito tempos, entre tremidos percussivos que elevam a alma. Não somos a luxúria em movimento. Somos seres em transcendência. E isso é dança do ventre.
Mostra de Dança Lara Vasconcelos
(21 anos de dança)
Quando? 20/10 (sexta-feira)
Horário: 19h 30min
Local: Teatro Alberto Maranhão.
Para comprar os ingressos, acesse:
https://www.sympla.com.br/evento/lara-vasconcelos-21-anos-de-danca/2163780
(Ingressos serão vendidos na bilheteria do Teatro Alberto Maranhão)
Para fazer aulas, acesse:
https://tuaregnatal.com.br/site/aulas-online/
Instagram da Tuareg Kasa do Oriente:
https://www.instagram.com/tuaregkasadooriente/
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