Ana Carolina Monte Procópio

30/12/2019 00h34
 
 
NOVO ANO NOVO
 
 
 
Para ganhar um Ano Novo 
que mereça este nome, 
você, meu caro, tem de merecê-lo.
Tem de fazê-lo novo, sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo 
cochila e espera desde sempre.
 
RECEITA DE ANO NOVO - Carlos Drummond de Andrade
 
A passagem para um outro ano remete sempre à questão do tempo. Tempo que, nesta época do ano, reveste-se da ideia de renovação, recomeço, novas disposições e, por outro lado, reflexões sobre como foi vivido mais um ciclo solar. É quase que inevitável um olhar retrospectivo, ao mesmo tempo em que se tecem esperanças para o ano vindouro. 
 
Sobre esperança? Falaremos daqui a pouco do próximo ano. Agora, um olhar para o ano que está a dois dias de se encerrar.
 
2019 foi o ano de consolidação da distopia no Brasil. O patamar civilizatório, que vinha decrescendo especialmente nos últimos 3 anos, atingiu um nível impensável até há pouco tempo. A perda acelerada de direitos nas esferas trabalhista; previdenciária; da saúde; da assistência aos deficientes; da proteção às minorias; dos indígenas; do meio ambiente, entre outras, fez eclodir um cenário de visível enfraquecimento de direitos humanos em praticamente todos os setores da vida social. 
 
Em 2019, ardeu a Amazônia e o desmatamento bateu recorde. Também bateram recorde os números de agrotóxicos admitidos no país e de indígenas assassinados. Os povos originários desta Terra de Santa Cruz estão novamente sob ataque e sem defesa diante da evidente desigualdade de condições no embate que se apresenta. Postos da FUNAI têm sido desativados, outros foram alvo de atentados a tiros.  
 
O índice de feminicídio ultrapassou todas as marcas anteriores. Esse crime bárbaro, alimentado pela cultura patriarcal e machista em que o Brasil, infelizmente, está imerso, parece ter virado algo corriqueiro. Ainda não se tem um número fechado dos casos ocorridos neste ano, mas desde o seu início registrou-se um aumento notável; o percentual, em relação ao mesmo período do ano anterior, foi-se elevando ao longo do ano. Interessante registrar que o número de homicídios teve uma redução, o que significa que o feminicídio, especificamente, tem crescido de forma acelerada e oposta à diminuição dos crimes contra a vida de maneira geral. Os casos de crimes contra a população LGBT também subiram em níveis inéditos e o estupros também aumentaram. 
 
É certo que não se pode dissociar esses dados de estatísticas criminais do estado de espírito reinante na sociedade atual, de tendência autoritária, patriarcal, machista, excludente e violenta; uma sociedade que ainda não superou a Casa Grande.
 
No que diz respeito ao mundo do trabalho, o desemprego campeia. Poucos empregos formais e, ainda assim, precarizados pela reforma trabalhista. Muita informalidade e a consolidação do “empreendedorismo à brasileira”: a necessidade que força os cidadãos a “empreenderem”, de maneira precária e amadora, sem assistência ou orientação, para poderem sobreviver. 
 
A miséria e a fome voltaram a ser a realidade nacional – por opção, pois sabe-se que afastar a fome é algo possível. A iniquidade social coloca o Brasil na triste e cruel posição de figurar entre os cinco países mais desiguais do mundo, com a concentração de 22 a 23% do total da renda nacional nas mãos de 1% da população, segundo estudo recente da ONU (https://nacoesunidas.org/brasil-esta-entre-os-cinco-paises-mais-desiguais-diz-estudo-de-centro-da-onu/).
 
Quem diria que, ao findar a segunda década do século XXI, tantos anos após a consolidação da ideia de garantia de direitos humanos inalienáveis para cada ser no planeta – expressa em Declaração a qual o Brasil aderiu há décadas – estaria o país em tal situação? Para onde se olhe sobra dor, sofrimento, carência, morte. Tristes, tristes dias. 
 
“Mas, no entanto, é preciso cantar; mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar pra alegrar a cidade”, diria hoje uma vez mais o poetinha Vinicius de Moraes. 
 
Sim, é preciso cantar, é preciso dançar, é preciso fazer arte, é preciso reunir-se para acender a chama da solidariedade humana e da resistência à opressão. É no escuro que se deve acender a luz e iluminar o caminho para quantos estejam dispostos a trilhá-lo. É o momento de louvar e lutar pela liberdade e pela fraternidade; esse é o desafio que nos é posto neste momento da iminente chegada do ano de 2020.
 
É preciso que abramos nossos olhos, que olhemos ao redor e que saiamos do nosso torpor. O tempo é de espanto, sim, mas é preciso convertê-lo em tempo de esperança, no sentido freiriano do termo:
 
“é preciso ter esperança. Mas tem de ser esperança do verbo esperançar”. Por que isso? Por que tem gente que tem esperança do verbo esperar. Esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. “Ah, eu espero que melhore, que funcione, que resolva”. Já esperançar é ir atrás, é se juntar, é não desistir. É ser capaz de recusar aquilo que apodrece a nossa capacidade de integridade e a nossa fé ativa nas obras. Esperança é a capacidade de olhar e reagir àquilo que parece não ter saída. Por isso, é muito diferente de esperar; temos mesmo é de esperançar!”
(Paulo Freire – Pedagogia da Esperança)
 
Sigamos em frente, há um caminho a ser percorrido. E que seja novo o nosso “jeito de caminhar”, segundo a exortação do poeta Thiago de Mello. Ah, os poetas e seus faróis...
 
Feliz Ano Novo!

 


*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).