Eva Potiguara

07/05/2024 08h41
 
A Plurifruição da Escritora Indígena
 
Apesar dos desafios do mundo contemporâneo, a literatura indígena se faz presente, a escrita da mulher indígena se revela e se mostra como força de resistência e expressão e, portanto, de escrevivências ancestrais que sangram dolorosas memórias incrustadas.   
 
Com base nas leituras de mulheres indígenas de várias etnias que temos pesquisado e vivenciado nos últimos seis anos, arriscamos na defesa de que a escritora indígena se permite ser narradora de uma produção coletiva, marcada por lutas incansáveis por justiça e dignidade, uma voz que ecoa do seu corpo/território, de sua corporeidade, como manifestações viscerais do sangue que a gerou. 
 
Supomos que a poesia da mulher indígena, além de ignorar (na maioria das vezes) valores estéticos da literatura ocidental, remete a uma conexão ancestral entre o sagrado e a atrocidade que tecem os fios de sua ancestralidade. Isso não quer dizer que não haja obras de escritoras indígenas que não sigam as normas da academia. Nos referimos à fruição comprometida com as emoções, as memórias e a espiritualidade da poeta e não apenas com a sua intelectualidade.
 
Não se trata meramente de uma capacidade sensível, mas de uma ebulição inquieta e viva dentro da escriba, um rio em chamas que inunda o seu processo criativo de histórias de vidas que desaguam pelo viés da palavra, numa plurifruição literária intercultural. Tal produção nos permite dialogar sem fronteiras e sem censuras técnicas, culturais, possibilitando rupturas a cada dia mais resistentes com a segmentação, com a massificação cultural e com o elitismo eurocêntrico, pelo qual somos bastante discriminadas. 
 
Os leitores que puderam apreciar as obras de nossas escritoras indígenas, como Eliane Potiguara, Márcia Kambeba e Graça Graúna, podem observar que os contos e os poemas da mulher indígena reviram o passado no presente e denunciam crimes silenciados. As palavras queimam e ardem por justiça social, são vozes dos nossos povos, das nossas matriarcas abusadas e famintas por reparações históricas. 
 
O nosso projeto literário do Álbum Biográfico do Mulherio das Letras Indígenas, “Guerreiras da Ancestralidade”, ganhador do Prêmio Jabuti 2023, revela que as obras das sessenta e quatro escritoras, de várias etnias, não contam enredos com final feliz. As escritas autobiográficas do referido álbum narram e descrevem lágrimas de dores sobre o solo encharcado de sangue de nossos ancestrais, mas teimam na resistência de submergirmos como sementes. Os poemas, contos e prosas das manas coautoras da obra indicam que todas aprenderam a língua do branco para tornarem-se escritoras semeadoras das vozes de seus encantados e honrarem a memória de seus povos originários. 
 
Confrontamos não apenas a realidade perceptiva material revestida pelo capitalismo colonial. Estamos em constantes buscas para reafirmar as vozes da nossa ancestralidade e os nossos direitos à vida e à Terra mãe. Nossa escrita se dilui de sentidos e significados, de simbologias e imagens mentais que conspiram a favor desse fluxo energético de narrar a vida segundo as cosmovisões de nossas tradições milenares. 
 
Na obra “Abyayala Membyra Nenhe'gara” (“Cânticos de uma filha da Terra”), de Eva Potiguara, nos vemos como escribas do nosso povo e de nossos ancestrais, nos reencontramos a cada palavra que ela tece, que entoa, e nos tornamos arte viva. Temos essa dualidade que tece nossa corporeidade numa fenomenologia sensível e crítica social da leitura do mundo. Nossa plurifruição navega sobre a dureza e a perseverança de nossos rios de existências. 
 
A nossa literatura é decolonial, porque confronta as normas dessa sociedade forjada na efemeridade humana e no forte apelo consumidor do capitalismo. A essência da nossa escrevivência é singular e plural, navegamos num rio de fluxo atemporal de forma intensa, mergulhando numa fruição que agrega cada pedra que abate nossos sonhos, com uma flecha de esperança de torná-los reais. 
 
Assim, quando nós mulheres indígenas escrevemos, estamos envolvidas ou implicadas em  determinado fluxo que se manifesta numa ação orgânica e inscrita pela vida. Nesse movimento de imersão e sinergias, nos voltamos inteiras para este servir incondicional, ao ponto de sermos uma coletividade que escreve.  
 
A arte literária que produzimos representa e defende nossa ancestralidade na contemporaneidade, considerando suas raízes no passado e suas perspectivas decoloniais para o futuro.  
 
Eva Potiguara 
#leiamulheresindigenas 
#obrasiléterraindigena 

Sobre a autora:
 
Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN, é Professora e pesquisadora do IFESP-SEEC, atuando nos cursos de Pedagogia e Letras. É produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, membro da UBE/RN, da SPVA e de várias academias de Letras no Brasil e em Portugal. Tem livros solos infantis e de poesia, publicados no Brasil e em Portugal. Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Maria Carolina de Jesus 2023, na categoria Romance.

 


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