Maurício Rands é advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford
“A última trincheira da escravidão”, de Cristovam Buarque
Este recente livro de Cristovam Buarque inscreve-se na melhor tradição de pensadores que souberam projetar o Brasil para além do imediato. Diante da nossa imoral desigualdade social, todos ficam tentados a discutir políticas sociais de efeito imediato. Trata-se de aliviar o sofrimento de milhões de brasileiros. O quanto antes. Mas isso não nos deveria eximir de pensar o médio e o longo prazo. E imaginar mudanças para que o nosso desenvolvimento corrija o atraso, a pobreza e a exclusão. Só assim teremos um projeto de país. Nossa história não tem sido muito pródiga em produzir pensadores e pessoas públicas com essa visão. Poderíamos aventurar algumas exceções. José Bonifácio, Dom Pedro II, Getúlio Vargas e Juscelino, para ficar em políticos que nos governaram. Outros foram ao mesmo tempo homens públicos, pensadores e inventores do futuro. Joaquim Nabuco, Darci Ribeiro, Josué de Castro e Paulo Freire. Cristovam inscreve-se nessa tradição...
Seu diagnóstico é irrefutável. Com a Abolição, os escravizados foram soltos, mas não foram libertados porque a Abolição continuou negando-lhes a escola. O mapa para alguém ser livre é a escola quem dá. Sem a educação de qualidade, ninguém pode saber o caminho para viver livremente na contemporaneidade. Somente no Século XXI, o Brasil começou a matricular todos na escola. Mas em escolas desiguais. Aí surge a última trincheira da escravidão: a dualidade da escola-senzala e da escola-casa-grande. Os descendentes sociais dos escravizados estão nas escolas de baixa qualidade. Sem acesso ao aparato básico para exercer uma cidadania plena no novo mundo digital. Estes são a vasta maioria do povo brasileiro. Já para os descendentes sociais dos escravocratas, esse triste país garante escolas de nível internacional e lhes proporciona uma formação com todas as ferramentas do conhecimento necessárias para trabalhar e empreender no novo ambiente tecnológico.
Um dos pontos altos do livro é o capítulo em que Cristovam apresenta o debate dos 10 dias de maio de 1888, quando tramitou o projeto da Lei Áurea enviado pelo presidente do Conselho de Ministros, o pernambucano João Alfredo. Ele dá-nos um belo aperitivo da brilhante retórica de Joaquim Nabuco. Os velhos argumentos de escravocratas como o Barão de Cotegipe, para quem o projeto era “precipitado, irresponsável e arruinaria a economia”, Andrade Figueira ou Paulino de Souza, para quem a medida era “arriscada e precipitada”, podem ser reconhecidos na retórica dos que hoje não enxergam a urgência da Revolucão Educacionista. Como os escravocratas diziam que o fim da escravidão deveria ser gradual, os atuais conservadores não se colocam contra a escola de qualidade. Apenas imaginam que ela será conquistada aos poucos. Não lhes incomoda ver os seus filhos em escolas de uma (boa) qualidade que é negada às escolas dos pobres.
Numa merecida homenagem a grandes personagens do Abolicionismo e do Educacionismo, Cristovam apresenta uma pequena biografia de alguns deles. Começa com mulheres como Aqualtume (mãe de Ganga Zumba), Dandara dos Palmares (esposa de Zumbi), Maria Tomásia e Olegarinha Mariano. E prossegue com vultos como Zumbi, Luís Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, Joaquim Nabuco, Castro Alves e José Mariano. Entre os educacionistas, homenageia Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Gustavo Capanema, João Calmon, Anysio Teixeira, Paulo Freire, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes.
O livro é um brado por uma nova mentalidade comprometida com uma educação básica de qualidade independente da cor, classe social e ou endereço do estudante. Por uma Revolução Educacionista, em alusão à luta abolicionista.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR.
*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).