Valério Mesquita

22/11/2019 14h36
MEMÓRIA POPULAR  - PARTE II
 
 
01)  Em Assu, lá pelos anos setenta, Walter Leitão era o Prefeito Municipal. Na irreverência e na ironia era inexcedível. De uma feita, chegava a sua casa na cidade, quando encontrou um eleitor dormindo na poltrona da sala de visita. Não o despertou. Tomou banho, almoçou e ficou só de cuecas samba-canção. Quando o correligionário acordou e viu o Prefeito caminhando pela casa só de ceroula, exclamou: “Mas, seu Walter o senhor ta só de cueca?”. “Claro, é para você entender que a merda dessa casa é minha e não se permitir a fazer certas intimidades”.
 
02) O prefeito Walter Leitão atendia o povo na rua, em casa, na Prefeitura e em qualquer parte. Uma mulher a ele se dirigiu com certa arrogância para lhe reclamar um desconforto: “Prefeito, estou aqui com o pé da barriga doído porque comi macaxeira. O senhor não vai dar um jeito não?”. Walter Leitão, que não suportava malcriação, de bate pronto, respondeu com grossa irreverência: “E eu estou com a macaxeira doida de tanto comer pé de barriga”.
 
03) Tempo melhor da política foi o dos anos cinqüenta na fase áurea do PSD versus UDN. Aqui no Rio Grande do Norte a política era um pastoril animado e lírico. Na Assembléia Legislativa se engalfinhavam dois deputados da região agreste: o Coronel Zé Lúcio e o Deputado João Frederico, que tinha como logomarca de sua atuação parlamentar, a expressão: “É um só mas vale por dez”. Aí a turma imaginava tudo que queria para macular a frase ambivalente do combativo deputado. Mas, estava escrito que o Coronel Zé Lúcio não perdoava a invasão dos seus redutos pelo Dr. João Frederico que discursava bem, além de valente e obstinado. Numa sonolenta sessão vespertina da Assembléia, o Deputado José Lúcio resolve discursar (coisa rara), despertando a curiosidade geral, inclusive do presidente da Casa, Dr. José Augusto Varela. “Senhor Presidente”, iniciou o representante de Santo Antônio do Salto da Onça, já aos gritos. “Subi aqui para dizer que o Deputado João Frederico tá comendo a empregada dele!”. A campainha da mesa soou estridente, acionada pelo Dr. José Varela. “Deputado, V.Exa. está ferindo o decoro e o regimento da Assembléia”, censurou energicamente. “Mas, acontece, Zé Varela, que eu provo!”. Aí foi um Deus nos acuda! Colegas parlamentares desceram Zé Lúcio da tribuna e o levaram ao gabinete do Presidente para curar a sua febre repentina de defensor das minorias. João Frederico não deu ouvidos. E a sessão continuou sem mais alteração.
 
04) Era domingo e o sol convidava o natalense para o litoral. Nada como o mar e a brisa para reparar a fadiga da rotina semanal do trabalho. E dentro desse enfoque, surge o publicitário e Secretário de Ação Social Tertuliano Pinheiro, que recebeu um convite amistoso do seu colega Nelson Freire para visita e almoço no aprazível Condomínio Porto Brasil, entre Pirangi e Cotovelo. Visão panorâmica do oceano, conforto, fidalguia do anfitrião e whisky generoso marcaram os instantes felizes dos convidados. Almoço farto e conversa amena sob agradável fundo musical, que não deixou fora o repertório das músicas do deputado e compositor Nelson Freire, em parceria poética com o bardo novacruzense Diógenes da Cunha Lima. O sol esmaecia. O cair da tarde exigia aos circunstantes a revitalização dos folguedos para afastar a sonolência clássica do whisky e a exaustão dos papos, que já se tornavam repetitivos. Música ao vivo! Alguém gritou. Nelson, cadê o seu violão? Eram os pedidos oportunos de outros convidados, admiradores da voz e do toque de Nelson ao violão. Um nativo daquelas plagas (empregado ou eleitor) lembra ao deputado que na comunidade existe um músico tecladista. Alvoroço. Providências. Chega finalmente o musicista e seu equipamento, armado no amplo alpendre da casa. Nova rodada de bebidas é servida com gostosos petiscos. Havia ansiedade no ar, enquanto o artista armava o seu instrumento. Tertuliano Pinheiro observava o seu perfil e fazia para si mesmo uma análise não muito lisonjeira. Conversas rápidas, risos, cigarros acesos, olhares furtivos, todo um clima que sempre antecede uma apresentação artística em qualquer teatro ou casa de show. Após quase dez minutos afinando a pianola, o cantor arremeteu uma nota grave e sonora, como se tivesse iminente o inicio da apresentação. Todos olharam e silenciaram. Para a surpresa geral, a revelação musical de Pirangi sacou um discurso pegajoso e confuso: “É com muita alegria né, que estou aqui né, na casa de Nelson Gonçalves”. Aí o alpendre veio abaixo. Tertuliano, ao lado, desmaiou de tanto rir. “Tá bom, tá bom, toca, toca”, surgiram difusos apelos da galera sofrida. Após, o deslize nominal com o anfitrião, o pior ainda estava por acontecer. Aos tropeços, tanto a voz quanto a execução do artista eram sofríveis. A noite começava e com ela os sussurros abafados e expulsórios: “Muito bem, muito bem!!”. Mas o cantor das arábias continuava na dele porque se convencera que estava abafando.

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