Valério Mesquita

24/10/2018 13h37
Duas raposas indomáveis
 
Zé Bomba: apelido comum que podia estar associado ao do Posto de Gasolina ou ao popular soltador de traques juninos das ruas e das praças. Não. Zé Bomba era alcoólatra contumaz que vagava por Macaíba proferindo discursos de esquina em esquina. Os temas eram comuns, mas a entonação de voz parecia com a de Aluízio Alves e chamava a atenção dos ouvintes, nos anos sessenta e setenta, acostumados à sonoridade vocal do ex-governador. Mesmo sem dizer nada, falando vago, vazio e vadio, Zé Bomba foi um boêmio sem freios, orador e plantonista de todos os dias e noites, às vezes, sozinho, falando às estrelas. 
 
Seu pai era vendedor ambulante, baixinho, de olhos miúdos e malaios. Sofria com a bebedeira do filho e algumas vezes o vi chegar ao centro da cidade para pôr fim à fanfarra de José. Mas, orador que se preza ou se menospreza, tem o seu contraditório. Quando vaiado ou expulso dos bares, Zé Bomba apelava para o destempero verbal. E em tom discursivo, ofendia até à quinta geração dos provocadores. Esse comportamento lhe valeu, por vezes, algumas detenções. Curada a carraspana, do xilindró saía direto para o bar e, em seguida, renovava o seu repertório de alocuções piegas e frases de efeito das campanhas políticas da Cruzada da Esperança.
No aceso dos períodos eleitorais, Zé Bomba vestia-se de verde para caracterizar melhor a sua performance oratória. Nas passeatas carregava imensos galhos verdes com os quais gostava de parar em frente à casa das “araras”. Na maioria das ocasiões, quando não saia agredido, levava um banho completo de águas poluídas. No final dos anos oitenta a saúde de Zé Bomba começou a emitir sinais de fraqueza. Emagrecida, a patativa macaibense recolheu-se a sua casa à rua Dr. Pedro Matos (Aliança). A voz já não atendia mais os impulsos do orador candente e cadente. O álcool devorava-lhe o fígado velho de guerra. O guerreiro ensarilhou as armas: aguardentes, nunca mais. Aposentou-se. Jovem gastara a saúde, o físico e o tempo. 
 
Hoje, no silêncio da noite, quando a voz errante de um ébrio triste ecoa nos becos, quem está em casa relembra Zé Bomba, o discurso que ficou, o boêmio que se fez ouvir. 
Outra figura emblemática era Antenor Borges, preto, magro, chapéu branco de massa, morava no Gondelo, periferia de Macaíba. Gostava de falar difícil e sempre fazia, numa roda de amigos, prevalecer as suas opiniões e ditos. Todos os dias empreendia o percurso entre o mercado público, “cinco bocas” e o seu sítio Gondelo. Assunto preferido: política. Bacurau do pé roxo, Antenor nunca perdia uma passeata ou comício de Aluízio, Henrique, Mônica, MDB ou PMDB. Foi um soldado fiel de suas hostes, nunca faltando no frontispício de sua casa e dos filhos a bandeira verde das paixões, quer fosse período eleitoral ou não. Ser um bacurau para ele era um permanente estado de espírito.
 
Certa vez, tive com o seu filho Zé Borges, motorista do Colégio Agrícola de Jundiaí, um tira-teima. Prometi ao povo, em determinada campanha, que a estrada que liga a BR (próxima à antiga fábrica da Famosa) até Jundiaí seria asfaltada. Zé Borges, crítico e zombeteiro igual ao pai, por onde passava lançava dúvidas e invectivas à minha promessa política. Chegou a divulgar insistentemente que se tal serviço fosse realizado, ele, Zé Borges, percorreria de joelhos todo o trecho, ida e volta. Era Diretor do DER o coronel Hélio Rocha que havia me passado, antes, a informação da experiência de um novo tipo de asfalto e o percurso escolhido seria aquele. Quando a obra foi executada, reuni o povo e fui inaugurar o melhoramento. Na hora de discursar, resolvi dar o troco às provocações de Zé Borges com o refrão em cada período da oratória: “Alô, Alô, Zé Borges, da promessa ninguém foge!”. Infelizmente, essa parte litúrgica não se cumpriu. Antenor dissuadira o filho.
 
Antenor Borges foi companheiro leal de Paulo Cúrcio Marinho, sobre o qual já me referi em outra crônica. Ambos metiam medo pela língua ferina. Era nitroglicerina pura. Quando avistados na rua, ninguém deixava escapar o comentário: “Lá vão Jararaca e Ratinho”. Apesar da postura xiita na política, sempre recebi dele um cumprimento cordial, que era devolvido em dobro, na esperança de conquistá-lo. Certa vez, consentiu em me receber em sua casa no Gondelo. Lá fui com a certeza de que iria acolher a sua adesão. Depois de muita conversa e rodeios, Antenor, duro na queda, me pediu uma coisa inusitada na política: que lhe conseguisse os seis volumes da coleção do “Livro Médico”, edição dos anos trinta. O velho Antenor estava me embromando. Queria fazer comigo era uma gincana. Uma senhora raposa política, difícil de capturar.
 

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