Fábio de Oliveira

21/03/2022 09h33

 

Narrativas indígenas em sala de cinema comercial

Semana passada aconteceu algo que não estava escrito no roteiro nem tampouco na minha imaginação. Mas tal acontecimento foi uma experiência histórica e fortalecedora para nossos povos. Diante de uma indústria cultural majoritariamente branca e burguesa, ocupar espaços para apresentar e representar nossas narrativas é motivo de muito orgulho, e resultado de muito esforço e estudo. A estreia do documentário Warao: tecendo diálogos de igualdade em um cinema comercial, proporcionou-nos sensações e afirmações que podemos sim ocupar estes espaços.

Durante o ato indígena ocorrido no dia 30 de junho do ano passado, contra o Projeto de Lei (PL 490) – na praça dos Três Poderes, no Centro Histórico de Natal –, conheci mais de perto os parentes Warao vindos da Venezuela e as questões que os cercavam. Após essa ocasião, o indígena Warao Aníbal Cardona, o indígena em contexto urbano, Ibirapi Damião Paz e eu, reunimo-nos para projetar um documentário sobre o povo Warao. A ideia era submeter esse projeto para um edital que foi lançado em meados do segundo semestre do mesmo ano, promovido pelo Serviço Social do Comércio do RN (SESC/RN).

Após vários diálogos e encontros, o roteiro foi pensado e desenvolvido requintadamente para que não fosse mais um produto comercial desta indústria audiovisual, que em vez de contribuir para o fortalecimento e visibilidade dos nossos povos, tomam nossos lugares de fala e só reforçam estereótipos sobre nós. Desde o princípio, o objetivo do nosso projeto foi apresentar a realidade e a riqueza cultural que foi tomada e que ainda há nos parentes Warao, pois tragicamente o que muito se observa são roteiros em que as narrativas são de um povo em condições subalternizadas pelo modelo opressor político-econômico. 

Muitas das definições do que seja documentário são limitadas a apresentar a realidade ou até mesmo forjá-la. Então, é aí que podemos notar um controle sobre as imagens para engessar nossos povos e naturalizar opressões cotidianas. Um indígena pedindo trocados nos semáforos sempre foi o modo de vida do seu povo?

Como consequência de um projeto bem elaborado, tivemos o nosso aprovado e pronto para iniciar as etapas de produção, das quais foram verdadeiras trocas culturais coletivas entre todes envolvides no processo. Foram quatro diárias envolvidos na rotina dos parentes Warao, que nos possibilitou, de forma sensível, compreender as necessidades e lutas diárias. 

Dentro do orçamento do projeto contemplado no edital, os nossos parentes Warao, que participaram de entrevistas e funções dentro do documentário, foram remunerados e inseridos na ficha técnica. Pois compreendemos que foi dedicado tempo para transmitir saberes e histórias. Essas condutas são formas de visibilizar e valorizar o trabalho intelectual dos nossos parentes, que muitas vezes não são reconhecidas por algumas produções audiovisuais. É responsabilidade social do projeto, sendo ele idealizado por indígenas e não indígenas.

Com o documentário pronto, a estreia foi anunciada pelo SESC/RN para acontecer em uma das salas do Cinépolis. Uma iniciativa que não acontece todo dia no segmento audiovisual potiguar. Foi marcante não somente para mim, mas para todes da produção do documentário.

Mesmo que infelizmente não tenha ocorrido a presença dos parentes Warao no lançamento – por questões internas –, acredito que tenhamos conseguido representar e a mensagens de Petra Perez, Aníbal Cardona e Ramon Quiñonez foram imortalizados nos frames desta obra, a qual ecoará pelos festivais de cinema e audiovisual da Pindorama.

 

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