Daniel Costa

14/05/2021 15h35
 
 SAUDADE QUE NÃO MORRE
 
 
Um copo de Stolichnaya e Keith Richards cantando The nearness of you. Eu realmente poderia estar satisfeito com isso numa noite de sexta. Mas a perda da liberdade nestes tempos de pandemia incomoda pra valer. Dói no estômago a impossibilidade de não poder fazer escolhas; a sensação de que é impossível assumir as rédeas da vida e controlar o que irá acontecer amanhã.
 
Tudo bastante diferente da época em que eu escutava os latidos do casal de Dobermans, enquanto os adultos falavam a respeito do julgamento de Jesus Cristo. Eles pareciam saber de tudo. Eram reis e sábios. Eles tinham quase poderes divinos. E eu ficava calado, com um copo de refrigerante nas mãos, tomando notas mentais, tentando aprender como destrinchar as pedras e percorrer com sucesso os caminhos dos labirintos da existência.
 
Hoje, sinto que aquelas ocasiões foram poucas. Seria preciso muito mais. Talvez ouvir tudo novamente, amanhã, depois e depois, para enfim acabar de vez com a angústia do desconhecido em que cada nova informação significa apenas um novo abismo. Agora que estou exilado, privado do mundo, tenho saudades. Tenho saudades do ontem. Mas só me resta sentir o tempo escapar entre os dedos na espera de um amanhã que nunca foi tão incerto. Essa é a única verdade que chega. Ela quase cansa. 
 
É doloroso constatar que jamais fui capaz de compreender a vida e de encontrar a combinação certa para destravar os seus cadeados. É aí que o mundo desaba, quando o cowboy percebe que a sua estrela de xerife jamais significou poder. É quando a criança finalmente entende que o seu revólver era apenas um brinquedinho de plástico.
 
A solidão causada pela última dose de vodca e a derradeira ponta do Lucky Strike, contrastam com a esperança de outrora. Sigo os dias maquinalmente e sinto falta da prisão em que eu vivia; da outra rotina dentro da qual era possível ouvir Gustavo Concentino tocando o seu blues no 54 Bar.
 
Quem sabe mais à frente eu também não irei sentir nostalgia dos tempos atuais. As coisas ruins são esquecidas. É uma questão de sobrevivência. No final das contas, talvez a vida seja apenas uma eterna saudade.
 

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).