Bia Crispim

23/04/2021 00h04
 
Mãe maravilha
 
Nesse último dia 18, minha mãe completou 82 anos. É uma jovem senhora elétrica, altiva, autônoma e autossuficiente, dona de sua vida, de sua casa e sua cozinha. Dona Isaura. Normalista, professora atuou por mais de 50 anos na lida docente. (Certamente minha veia de professora veio dela).
 
Após 9 anos de  ter sido mãe daquela que parecia ser a última de 5 garotas cis, em 1977 ela me pariu... Eu, uma garota Trans, que até então não se sabia garota. Afinal de contas, demora muito para que tomemos consciência até sabermos quem somos. 
 
Mas não estou aqui para falar de mim, estou aqui para prestar minha homenagem a essa mulher espetaculosa a quem tenho o privilégio de chamar de MÃE! Estou aqui para falar um pouco dela e de nossa relação.
 
Dizem que “ser mãe é padecer no paraíso”, não sei se essa máxima é verdadeira, sobretudo do ponto de vista da mãe de uma pessoa Trans/Travesti. Principalmente num país de bases aparentemente tão conservadoras e de uma mãe que foi educada dentro de princípios religiosos tão tradicionais.
 
Nunca conversei com ela sobre essa questão: Como foi me aceitar... Se houve sofrimento, repúdio, desejo de que eu não tivesse vindo ao mundo, desgosto... Não conversei porque minha relação com ela sempre foi tão harmoniosa, tão cheia de amor, que se em algum momento passou por sua cabeça alguns desses sentimentos, eles forma demonstrados de maneira muito sutil. Imperceptíveis a mim!
 
Lembro que quando furei a orelha pra começar a usar brincos minha mãe disse: “Você vai matar seu pai”... Mas, lembro também que naquele mesmo ano, ele me deu um par de brincos (discretos) de ouro (Para não ficarem pretos nem infeccionar a orelha!) como presente de natal, Se havia desagrado, foi-se com o par de brincos. O recado que chegava a mim era, “você será aceita, aconteça o que acontecer”.
 
Lembro-me de ela comprar a uma das minhas irmãs que vendia roupas na época, as peças mais não-masculinas que tinham, roupas coloridas que adolescentes da minha idade não usavam. (Já seriam roupas de transição... calças de cintura baixa, moletons transadíssimos para a moda dos anos 80/90.)
 
Eu era diferente da pessoa que esperavam que eu fosse... Sempre fui. Fui uma criança viada cheia de trejeitos afeminados, fui uma adolescente pressionada pela sociedade a me portar igual àqueles a quem me igualavam, mas dentro de casa eu era eu e acho que minha mãe reconheceu isso muito cedo, porque, de todas as formas ela me protegeu, ela não largou minha mão, ela fez os outros me aceitarem.
 
A figura respeitosa de minha mãe criou uma espécie de redoma... E quando eu resolvi transicionar, foi como se já fosse isso que todas as pessoas já estavam esperando que acontecesse. Houve medo, não foi fácil pra ninguém, mas a transição já era um fato e mais uma vez a figura de minha mãe apoiando-me, me deu a certeza de que se o mundo me negaria, haveria alguém que me acolheria a todo e qualquer momento. 
 
Sei o quanto deve ter sido difícil pra ela, ver seu único menino transicionar, Ver mais uma menina desabrochar em seu jardim. Acho que dei a minha mãe uma filha a mais, pois sei que aquele menino que um dia eu fui nunca morreu pra ela. Está em algum lugar, como um parente distante que dá notícias de vez em quando, através de fotos antigas ou de alguma outra lembrança.
 
Sei de seus medos, sobretudo da violência e da rejeição que podem me atravessar a qualquer momento. Mas também sei de seus cuidados. Sei de sua admiração, Sei de seu orgulho. Sei de seu amor. Sei que sem ela, eu não seria. (Estou escrevendo isso morrendo de chorar, acreditem)
 
A minha mãe, todo o amor que houver no mundo será pouco. Toda gratidão que possa demonstrar será insuficiente. Toda admiração será incapaz de traduzir o encantamento e deslumbre que a vida e a presença dessa mulher irradiam sobre mim.
 
Dona Isaura, obrigada por ser minha MÃE MARAVILHA!
 

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).