Andreia Braz

12/04/2021 10h00
 
Ovo de Páscoa
 
A vida sem ternura não é lá grande coisa.
                                                José Mauro de Vasconcelos
 
 Final de tarde de domingo. Saio para caminhar e ir à padaria. A caminhada foi, também, um pretexto para tentar amenizar o tédio do dia. Apesar de uma enorme quantidade de trabalho, não estava com disposição para fazer nada naquele dia. Na porta do estabelecimento havia uma mulher pedindo esmola, sentada no chão. Perguntei o que ela gostaria que eu comprasse e me pediu “alguma coisa pra botar no pão. Comprei uma bandeja de queijo muçarela. Notei que ao lado dela havia um pacote de pão. Consternada com aquela situação, segui a caminhada e fui em busca de um bolo de chocolate numa outra padaria ali próximo. 
 
Ao sair do local, outra cena comovente: duas crianças me pedem um ovo de páscoa. Desconcertada, doei um chocolate que tinha na bolsa e sugeri que dividissem entre elas. Saí de coração partido e voltei pra casa sem qualquer ânimo para comer aquele bolo de chocolate que eu desejava há dias. Para completar, no canteiro, uma menina de olhar triste e cabelos desgrenhados, também pedia um ovo de páscoa.
 
Como voltar para casa feliz? Mesmo sabendo que desfrutaria de uma noite tranquila e segura em meu lar, na companhia de minha irmã Cristina, não parava de pensar naquelas famílias que não têm o mínimo para viver e o quanto isso é injusto e revoltante. Não conseguia parar de pensar naquelas crianças de olhares sofridos e com tantas carências. Crianças impedidas de viver a infância plenamente.
 
Alguns passos à frente e mais um canteiro lotado de famílias pedintes. Muitas sacolas plásticas com mantimentos e várias pessoas sentadas no meio-fio. Mulheres conversam. Crianças se aproximam dos motoristas para pedir. Um homem arruma sua carroça de burro do outro lado da rua. Certamente deve estar esperando algumas daquelas pessoas com as doações do dia. 
 
Aquela cena das crianças pedindo chocolate me fez lembrar uma outra cena, no mínimo contraditória: as diversas fotos de crianças que inundaram as redes sociais exibindo seus ovos de páscoa ao longo do dia. Uma delas estava vestindo um pijama temático e exibia, além dos chocolates, uma bandeja de café da manhã. Isso sem falar nas festas, almoços e outras comemorações e presentes partilhados com os amigos/seguidores. Lembrei, especialmente, de uma criança que pousou com uns dez ovos de páscoa. Sem exagero. A menina deve ter uns três anos. É filha única.
 
Não estou criticando as famílias que podem e querem vivenciar a magia da Páscoa e oferecer aos seus banquetes, vinho e muito chocolate. E por que não postar isso nas redes sociais? Afinal, vivemos uma época em que mostrar a felicidade parece mais importante que vivê-la. De que vale um almoço de Páscoa sem uma foto ou um vídeo para o Instagram, não é mesmo? Em tempos de isolamento social, parece que essa necessidade de mostrar que estamos bem/felizes é ainda mais urgente. 
 
Não estou aqui para julgar ninguém. É apenas um ponto de vista e a partilha de algumas situações que me chamaram atenção durante o dia. Estou apenas refletindo sobre o significado de momentos como esses para crianças e/ou adultos que não têm o mínimo para viver, mas também gostariam de ser contemplados com um ovo de páscoa, uma caixa de bombons, ou que quer que simbolize essa festividade. 
 
Numa hora dessas é impossível não pensar no abismo social que é o Brasil. Impossível não pensar na desigualdade que não permite milhares de crianças crescerem com o mínimo: moradia, alimentação adequada, educação, esporte/lazer, segurança. Isso sem falar no pouco ou nenhum acesso aos equipamentos culturais, ao livro e à leitura, aliás as ferramentas que poderiam ajudar a mudar esse contexto e formar cidadãos mais críticos, atuantes e conscientes dos seus direitos e deveres. 
 
O descaso não é total porque existem as bibliotecas comunitárias e diversos projetos sociais voltados para oferecer arte e cultura a inúmeras comunidades Brasil afora, e uma infinidade de pessoas que trabalham de forma voluntária, na maior parte das vezes, para levar arte e cultura a esses lugares. E quantos desses projetos sociais não revelaram atletas, músicos, atores! Outro dia assisti uma entrevista com um jovem violinista que saiu de uma comunidade do Rio de Janeiro e hoje vive na terra de Mozart. Nascido no Morro da Mangueira, Nathan Amaral começou a estudar música aos oito anos em um projeto social e fez Bacharelado em Violino pela UNIRIO.
 
Aliás, tenho vontade de me juntar a outras pessoas e organizar uma biblioteca comunitária no meu bairro. Toda minha reverência aos bibliotecários e voluntários que se dedicam a esse tipo de atividade. Afinal, somente a educação e o acesso à arte e à cultura/lazer pode mudar a vida dessas crianças e lhes proporcionar um futuro digno.
 
Impossível não lembrar que estamos vivendo uma pandemia e que milhares de brasileiros atingiram a linha da extrema pobreza nesse período. Afinal, a pandemia escancarou a desigualdade social do Brasil. Milhares de cidadãos perderam seus empregos/renda. Milhares de famílias passaram a viver em situação de rua. Mas o governo acha que um auxílio emergencial de R$ 175 é capaz de sustentar uma família. Esse é o valor mínimo do novo auxílio oferecido em 2021. O gás de cozinha está custando 90 reais. Não fosse o trabalho incansável de diversas ONGs, como a Central Única das Favelas (CUFA), por exemplo, e de milhares de brasileiros que arregaçam as mangas e vão entregar comida nas comunidades, a situação seria ainda pior. 
 
Já vi exemplos de comunidades em que há um carro de som circulando pelas ruas e informando à população sobre os cuidados para evitar a contaminação pelo novo coronavírus. Muitos desses projetos sociais e/ou ações individuais também distribuem material de limpeza/higiene pessoal e máscaras de proteção, para ajudar no combate à Covid-19. Afinal, sabemos que as medidas de higiene não podem ser cumpridas por milhares de famílias que não têm acesso à água potável e tampouco condições de comprar material de limpeza/higiene pessoal.
 
Retornemos à história dos meninos pedindo chocolate na porta da padaria. Voltei para casa desanimada e com um sentimento de culpa avassalador. Eu deveria ter entrado novamente na panificadora e ter comprado um chocolate para aquela menina do sinal. Sei que isso não resolveria seus problemas, mas alegraria seu domingo de páscoa e talvez lhe fizesse acreditar que não deve deixar de sonhar. Eu também poderia presenteá-la com um livro... Tanta coisa passou pela minha cabeça naquele momento. Que vontade de abraçar aquela criança e lhe oferecer um pouco de afeto, atenção...
 
Quando cheguei em casa, uma surpresa: ganhei um ovo de páscoa do meu vizinho Marcos. Ele mesmo fez os ovos de páscoa que doou a alguns amigos. Além de muito prendado na cozinha e defensor dos animais, é uma das pessoas mais gentis que conheço. Sempre encontra uma forma de agradar os amigos. Isso é tão cativante. Aquele gesto causou-me profunda comoção, não apenas pelo chocolate em si e pelo carinho de Marcos, mas porque lembrei daquelas crianças que estavam no sinal de trânsito justamente pedindo chocolate. Elas precisavam de um ovo de páscoa. Eu, não. Eu também nunca ganhei um ovo de páscoa na infância, mas isso não tem importância agora. Essas coisas não fizeram parte da minha meninice, assim como Natal, Ano-Novo, aniversário... Meu desejo era ter voltado lá e ter presenteado cada uma daquelas crianças com um chocolate. E, mais do que isso, desejei que elas tivessem direito a um lar e uma noite tranquila com suas famílias. Que pudessem ir para casa tomar um banho, colocar uma roupa limpa, jantar e depois, quem sabe, adormecer com uma bela história.
 

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