Eliade Pimentel

18/03/2021 11h31
 
Eu quero a sorte de um amor tranquilo
 
Quem nunca um dia ousou sonhar com um amor com sabor de fruta mordida, aquele bacana, estilo Cazuza. Pois assim era o amor de Eliete e Nilson. Um casal que uniu a família Pimentel aos Barretos e deixou o legado Nilson Buffet e a marca Vivier Recepções, ambos com o sabor de festas inesquecíveis realizadas neste Rio Grande do Norte. Duas semanas após a partida de seu agora eterno companheiro, ela se despediu de nós. Quinta dos nove filhos e filhas de Helena e Sebastião, nascida em Volta Redonda, RJ. Nossa irmã, alçada ao posto de mais velha das cinco irmãs, visto que a mais velha de fato, Eldinha, é especial. 
 
Aqui e acolá, ela pegava uma de nós, eu, Elisete ou Elilde, no canto de parede.   Numa dessas de chamar a atenção por qualquer coisa que ela não gostava, lembro de ter recebido uma ligação sua reclamando de uma publicação em rede social que eu tinha feito, sobre alguma coisa de minha solterice. Lembro que eu sorri do lado de cá e disse, de uma maneira sorrateira, para desanuviar: ah, é esse o problema, eu não ter sido como você, que teve a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida? Eles eram quase uma simbiose. Começaram a namorar aos 17 anos. Ambos ainda não completaram 55, estavam há quase 38 anos juntos. 
 
Quantas coisas a gente testemunhou. Do namoro, ao nascimento das filhas, a segunda nove anos depois, as festas, os encontros, os banquetes. No dia a dia, no trabalho, nas dores e nas delícias. “Ser teu pão, ser tua comida. Todo o amor que houver nesta vida. E algum trocado pra dar garantia”. Construíram uma família: duas filhas e uma neta, Raíra, Lara e Melina, e de quebra o genro Plínio e o namorado da mais nova, Flávio, rapazes que têm sido fundamentais neste momento de dor incalculável. E eu, que ultimamente andava pensando muito nisso, porque tenho vivido algo bem tranquilo, não parava de pensar como seria para ela se acostumar com essa perda.   
 
Mas, por que tanta pessoalidade numa crônica? Para que tantos detalhes da vida da minha irmã e do meu cunhado-irmão? Só porque eles foram vítimas de covid como tanta gente neste Brasil e no mundo? Outro dia um conhecido, que é meu leitor daqueles bem críticos, encontrou-me na rua e me questionou, disse que eu só escrevo coisas boas. “Ah, esse negócio de ficar escrevendo sobre vida simples, vida saudável, tá por fora. Tem que falar das desgraças”. Não sei reproduzir ao certo os impropérios dele. Umas frases bem pesadas. Fiquei na minha, não quis aprofundar o debate. Eu apenas disse que sigo meu coração. E que meu coração me faz olhar para o horizonte, sempre que minha visão se encontra turva. 
 
Hoje, não tive como não me lembrar desse maluco. Sim, só pode não ter juízo uma criatura que espera que um espaço livre, quase um mural para eu “viajar” à vontade em meus devaneios, seja desperdiçado com más notícias. Ei, rapaz, não basta o telejornal, não? Se liga, cara, parece que às vezes acontece algo que se chama calamidade pública. Temos vivido isso há um ano, apesar de que ainda tem gente que insiste em negar. O vírus já demonstrou que não está perdoando quem é aparentemente saudável, e com os adoecidos e idosos ele está sendo impiedoso.  
 
A realidade nua e crua não está escolhendo porta para bater. Bateu na porta do meu vizinho, levou um amigo, um conhecido, um colega, e bateu com força na minha, por assim dizer. Na despedida de corpo presente de minha irmã, eu abracei as minhas sobrinhas com duas semanas de atraso, pois não participei dos ritos fúnebres de seu pai. Diante do caixão de minha irmã, aquela que era bem diferente de mim, mas me ensinou tanta coisa, estávamos três irmãs e dois irmãos, e mais alguns poucos familiares. Era boca da noite, havia uma lua bem tímida à minha direita. E assim, passamos a integrar uma estatística mórbida. 
 
O propósito desse relato não é fazer um obituário, tampouco chamar atenção para a minha dor ou da nossa família. O coronavírus entrou para aniquilar. E do jeito que as coisas estão sendo levadas, ninguém sabe se terá a chance de viver sequer o dia de amanhã, que dirá coisas arrebatadoras como a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida. Em nenhum momento eu quis ou quero ser egoísta, mas eu me conforto em saber que o destino os poupou de sentirem a perda um do outro. As filhas sabem disso. O casal descansou em paz. Em centenas de milhares de famílias destroçadas neste país, cada qual está desconfigurada de alguma forma. 
 
A população assiste, dividida, uma queda de braço. Neste momento, precisamos ficar o máximo em casa, proteger a quem a gente ama, respeitar os protocolos, e lutar com todas as nossas forças por mais vacinas. Se assim não for, vamos continuar todos os dias nos estarrecendo com as más notícias que não param de chegar. Os recordes de óbitos. As cepas variantes do vírus. O mau uso de verbas, as más intenções, as más línguas, fake news, receitas falíveis e não comprovadas de profilaxia. Para tudo isso, só há um caminho. Mais vacinas, mais vacinas, mais vacinas, entoemos esse mantra, por favor. 
 
Eu já estou me preparando para colocar a minha dor no bolso, porque daqui a pouco terei de ser forte para acalentar outro coração partido. Sejamos todos fortes e ninguém solta a mão de ninguém. “As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”. 
 
Encerro com versos do poema Memória, de Carlos Drummond de Andrade, esta singela homenagem a minha irmã, ceifada pela covid em 2021, no dia 17 de março, a cinco dias do seu aniversário, extensiva a todas as vítimas do coronavírus.
 
 

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