Eliade Pimentel

16/01/2021 10h32
 
Lá onde os meninos brincam na rua 
 
 
Aqui e acolá vejo uns escritos de minha filha. O que ela chama de invasão de privacidade, eu chamo de isca. Ela sabe que eu amo ler enquanto ajeito a casa e deixa seus inúmeros diariozinhos pelo caminho. Eu refuto dizendo que não tem nada escrito que seja proibido, nem chave. Nessas leituras, amo ler sobre sua infância em Baía Formosa. Como o nosso pé de caju, no quintal, que tem formato ergonômico. Eu até levei uma queda, tão à vontade estava uma vez, muito bem sentada. Comecei a gargalhar, tibum no chão.  
 
Dia desses, estive na nossa casa para organizá-la para um grupo de hóspedes e, quando me deitava na sala, tentando dar uma relaxada, era obrigada a conciliar meu soninho com o zum zum zum e o vai e vem das crianças na rua. Um tirinete de vozes, menino contando 1, 2, 3... e dizendo gorou o ovo. Achei tão lindo aquele rebuliço, me deu esperança de dias melhores. Eu sinceramente fiquei rezando para que meus clientes pensem o mesmo. 
 
Que considerem, inconscientemente, as crianças como cenográficas, como também a buzina do homem do mungunzá logo cedo, o grito da macaxeira, o aviso do carro de som a qualquer hora do dia - ou melhor, da bicicleta do som, pois tem um moço que passa pedalando uma bike – e muitos outros ruídos típicos de uma cidade pequena. Não por acaso, o locutor-ciclista é tio de minha filha e herdou do pai a tradição da publicidade comunitária, que no caso dele, não é veicular. 
 
Numa das crônicas da garota, ela dizia que entendia “hooooje é sexta-feira!”, em vez de “oooolha a macaxeeeira”. E ficava com aquilo na cabeça. “Oxe, mas hoje é quarta-feira”. Por muito tempo, eu costumava dormir com 2 reais no bolso para acordar pronta para comprar salada de frutas – no meu copo, viu, moço, para poupar o meio ambiente. E mesmo eu apontando a linha correspondente ao copo descartável, o homem o enchia até a borda. 
 
“Amiga, né”, ele retrucava, querendo dizer que a minha preferência por seu produto me dava o prestígio do tratamento especial. Infelizmente, ele está doente da visão, não vende mais a saladinha. Atualmente, à tarde, meu hobby é ser surpreendida pelo vendedor de tapioca, beiju e bolos de macaxeira, batata e milho. Outro dia eu fiz a feira. Comprei um de cada. Para quê. De novo o assunto cenográfico: ficou tudo numa panela na mesa da sala, depois na geladeira, eu comi uma parte, outra não, e tive de jogar fora. 
 
Fiquei me sentindo aquelas senhorinhas que gostam de manter tradições, mesmo que não aja quórum para tanto. E por falar nisso, outro dia lembrei do pé de limão cravo da rua, quase em frente de casa, e minha água de limão religiosa teve gosto de fruta roubada. Tive aquele estalo e fui lá conferir. Que sorte a minha, estava carregadinho. Nem eu acreditava que fui pro meio da rua, com um ciscador, catucar o limoeiro do canteiro central.   
 
Outra coisa que já virou tradição é a soperia da Divina. Minha amiga e vizinha. Chama minha filha pelo diminutivo, faz café para mim, serve a melhor sopa de carne. É nossa segunda casa, minha e da maioria dos hóspedes. Agora tem wi-fi. Pronto. Todo mundo se aboleta na sua varanda, pede a senha, um café, um almoço, um lanche, um jantar, proseia com a dona da casa, se atualiza da política da cidade. 
 
Por aqui é assim, a melhor coisa é repetir ações simples como arrumar a casa, limpar o quintal, passear pela cidade inteira para resolver mil e uma questões, como chamar o moço para limpar os coqueiros, procurar o amigo para limpar o quintal e descascar os cocos verdes e secos. E claro, ir à praia para caminhar, para curtir, para relaxar. Fazer trilhas na mata. Nem sempre nessa mesma ordem. 
 
Nesses tempos em que os jovens – e até mesmo os adultos - estão presos dentro de casa, aos seus dispositivos eletrônicos, nas cidades pequenas o povo também está ligado aos aparelhos. Mas, a cena é diferente. As pessoas também estão conectadas umas às outras. Vejo meninos e meninas passando na casa dos amigos e das amigas para irem juntos à praia, surfar ou jogar vôlei. Eu vejo paz, vejo amor, vejo compaixão entre as pessoas desta cidade. 
 
O que é ruim, nocivo, não vejo. Ou, se enxergo algo que não combina com a cidade, tento combater. Quem ama, cuida. Acho que devemos pensar assim sempre, sobre os lugares onde o tempo anda mais devagar. 
 

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