Andreia Braz

04/01/2021 16h18
 
Do amor pelos livros
 
 
Impossível descrever o arrebatamento que nos provocam alguns livros. E foi assim com o romance “A Terra Prometida”, de Catherine Cusset. Comprei o livro meio que por acaso, de certa forma por influência de um amigo que havia acabado de adquiri-lo em uma daquelas feiras com preços promocionais. Estávamos reunidos com alguns amigos de nossa confraria em um café e de repente os livros que ele carregava consigo se tornaram o centro das atenções. De posse de vários exemplares, Atelmo, empolgado, mostrava ao grupo suas novas aquisições, lembrando que precisava catalogar todos aqueles livros antes de acomodá-los na estante. 
 
Além de ser um leitor inveterado, ele ordena sua biblioteca como faz um profissional, organizando todos os títulos em um sistema eletrônico de catalogação e etiquetando cada um deles, para em seguida separá-los de acordo com o gênero. É admirável o amor que tem pelos livros e a forma como fala de suas leituras, sempre com muito entusiasmo. Não é apenas um bibliófilo que coleciona livros, mas um amante da literatura em seu sentido mais amplo. Um leitor de verdade, digamos assim. É contagiante sua paixão pela literatura.
 
Bem, voltemos ao assunto das aquisições literárias do meu amigo Atelmo e ao papo na confraria Mesa das Consolações, um grupo que já existe há seis anos e se reúne quase que diariamente num dos shoppings da cidade, sempre no início da tarde. Dele fazem parte professores universitários (biologia e contabilidade), revisores de textos, administrador, bioquímico, técnico em segurança do trabalho, enfermeira, nutricionista e médico. Alguns deles já estão aposentados, e por isso dispõem de mais tempo para gastar suas tardes com agradáveis conversas sobre literatura, cinema, filosofia, música, viagens, política... 
 
Depois dessa pequena digressão, voltemos aos livros de Atelmo. Boa parte da conversa, regada a café, girou em torno dos seus novos livros. Havia títulos sobre música, história e crítica literária. Dois deles chamaram a minha atenção: “O Arlequim da Pauliceia: imagens de São Paulo na poesia de Mário de Andrade”, de Aleildo Fonseca (Geração, 2012), e “A Terra Prometida”, de Catherine Cusset (Manole, 2009), a que me referi no início desta crônica. 
 
Como de costume, li as orelhas para saber do que tratava cada um dos títulos. Adoro ler prefácios e orelhas! Mesmo sendo apaixonada pela obra de Mário de Andrade, queria saber mais sobre o livro, e fiquei encantada por saber que o autor apresenta, por meio de fotos e poemas, com uma linguagem simples e encantadora, a São Paulo vista pelos olhos sensíveis do poeta da “Pauliceia Desvaiarada”. Não pensava em outra coisa que não adquirir aquele livro. Coincidentemente, eu havia estado em São Paulo pela primeira vez há poucos meses, e alimentava uma admiração antiga pela cidade, a qual só fez aumentar depois de visitar alguns prédios históricos, museus, cafés e a famosa Avenida Paulista. É uma cidade realmente encantadora. Como disse o próprio Aleildo Fonseca, em uma entrevista: “Sempre volto a São Paulo e me admiro com sua grandeza. Essa cidade imensa me comove, me anula como indivíduo, e me eleva como ser; me esmaga com sua engrenagem e me orgulha com sua magnitude”. 
 
Imediatamente, eu e outros dois amigos, Edmar e Nelson, nos dirigimos ao estande na tentativa de adquirir o livro sobre Mário de Andrade e garimpar outras relíquias na feira. Para a tristeza do grupo, não havia mais nenhum exemplar do “Arlequim da Pauliceia”. A vendedora mostrou-se bastante interessada em nos ajudar e saiu em busca de algum livro perdido no meio de tantos títulos que ela disse estar reorganizando naquela tarde. Disse também que chegariam novos livros, mas não saberia precisar quando, nem quais. Desolados, voltamos para a confraria e prosseguimos nosso bate-papo, ao sabor de variados tipos de café: expresso, cappuccino, canelinha...
 
Após o encontro fui trabalhar e, vez por outra, lembrava a história dos livros, especialmente a parte da nossa frustração. À noite, passei no shopping novamente para pagar umas contas e decidi ir até o estande, a fim de saber se havia chegado alguma novidade. Nenhuma notícia do “Arlequim da Pauliceia”. Eu não tirava aquele livro da cabeça. Em compensação, deparo com um exemplar de “A Terra Prometida” em meio a alguns livros de contos e outros de literatura estrangeira. Não pensei duas vezes e o comprei imediatamente. Iniciei a leitura naquela mesma noite, e até agora não consegui parar. Falta pouco para vencer as 362 páginas do romance, e um sentimento estranho já começa a se apoderar de mim. Afinal, como me desvencilhar das minhas “viagens” diárias para Bucareste, Nova York e Paris? 
 
Ambientando em três países, ao longo de seis décadas, o romance conta a história de Elena, desde 1941, quando ainda era criança na Romênia dominada pelo ditador comunista Ceausescu e foi adotada por um casal de tios, passando pela imigração para os Estados Unidos, com o marido Jacob e o filho Alexandru, até chegar aos anos 2000, mostrando a rotina de um casal de meia-idade e os conflitos atuais com Marie, a esposa de Alexandru, que causa diversos incômodos à sogra e a faz remexer no seu passado, do qual ele fez questão de se desvencilhar desde que deixou a Romênia e cortou relações com seus pais. Os conflitos emergem especialmente pelas diferenças culturais entre ambas, mas também pela insegurança de Elena em relação ao filho único, a quem ela dedicou a maior parte de sua vida e para o qual almejou uma carreira brilhante.
 
Prestes a concluir a leitura e com poucas informações sobre a autora, decidi fazer uma pesquisa na internet. Isto é tudo que eu sabia sobre ela: Catherine Cusset nasceu em 1963, vive em Nova York e foi professora de Literatura do Século XVIII. Não encontrei praticamente nada sobre ela em português, além do resumo do livro em sites de livrarias.
No mais, algumas entrevistas em canais franceses e outras em periódicos de língua espanhola, como “El País”, por exemplo. O melhor de tudo foram duas entrevistas concedidas por ela em 2010, quando esteve na Espanha justamente para divulgar “Las vidas de Lenush” (título do romance em espanhol). Entre outras coisas, Catherine rememora suas influências literárias (Balzac, Proust, Kafka, Tolstói...), dá alguns conselhos aos novos escritores, fala do seu processo de criação e da rotina como escritora. Além disso, revela a motivação central para escrever o romance em pauta. Para os novos escritores, ela deixa o seguinte recado: “Mucha perseverancia. Sólo se puede ser escritor si se persevera. La perseverancia sólo viene del deseo y de la necesidad de escribir”. 
 
E por falar em novos escritores, lembrei-me de um texto cujo título é, no mínimo, uma provocação a um certo grupo de escritores que tem ganhado cada vez mais espaço nesse mundo das superficialidades literárias, por assim dizer, especialmente nas redes sociais, onde se alardeia todo tipo de informação e de repente a pessoa ganha status. “A misteriosa geração de escritores que não querem ler”, é assim que a publicitária e mestranda em comunicação Ana Luiza Figueiredo define o tal grupo de escritores. 
 
Não apenas escritores, mas também professores de língua portuguesa, fazem parte desse grupo. Sim, conheço alguns colegas de profissão que nunca mencionaram um livro sequer e outros que dizem em alto e bom som: “não gosto de literatura”.
 
Entre outras coisas, Ana Luiza Figueiredo atribui essa aversão ao livro alheio à crença de que a escrita é um dom, mas desconstrói essa ideia de forma categórica e reforça a importância da leitura literária para a construção de um bom escritor: “é impossível ser um bom escritor sem ler”. Afinal, “Antes de ser escritor, é preciso, sobretudo, ser leitor”. 
 
 

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