Andreia Braz

12/10/2020 11h03
 
Uma luz na adversidade
 
 
 
E a coisa mais divina que há no mundo é viver cada segundo como nunca mais.
                                                                                                                     Vinicius de Moraes
 
Imagine que você está com uma grave doença cujo diagnóstico vem acompanhado de uma “sentença de morte”. Uma doença cujo tratamento não lhe interessa porque você tem apenas três meses de vida. É esse o tema de um belíssimo filme cujo título já nos desperta certa curiosidade. Com uma sensibilidade profunda e dilacerante, Minha vida sem mim conta a história de Ann (Sarah Polley), uma moça de 23 anos que se descobre portadora de uma doença que em breve lhe ceifará seu bem mais precioso. Trata-se de uma produção norte-americana (2003), dirigida por Isabel Coichet.
 
Não, esse filme não é pra gente ficar chorando e se lamentando pelo que não teve tempo de fazer em meio às cobranças e angústias do nosso cotidiano. Ao invés de ficar se lamuriando pelo que vai perder, Ann resolve encontrar uma maneira de viver intensamente seus últimos meses de vida. De modo singelo, e quem sabe menos doloroso, ela encontra(?) uma “fórmula” de poupar seus entes queridos de todo o sofrimento que, inevitavelmente, acompanha uma realidade como essa.
 
A iminência da morte não parece causar nenhuma revolta em uma pessoa que foi mãe aos 17 anos, mora num trailer e trabalha como faxineira noturna em uma universidade, o que seria bastante compreensível pelo seu histórico de vida e mesmo em qualquer outra situação. Afinal, quem imagina que vai morrer em plena juventude, uma época em que nada nem ninguém parece ser mais forte e invencível que nós? Uma época em que tudo queremos, tudo somos e podemos fazer. Afinal, vivemos como se a finitude da nossa existência não fosse algo possível, sempre deixando para depois tantas coisas importantes. Não falo de coisas grandiosas, mas daquilo que é “invisível aos olhos”. Tantos planos não concretizados, tantas ideias esquecidas, tantos amores, encontros, desencontros, palavras não ditas, sentimentos não demonstrados... E um dia qualquer, pode “não haver gestos nem palavras novas”, como escreveu Florbela Espanca em seu Diário do último ano, poucos dias antes de sua partida.
 
Mesmo com um pai que vive encarcerado há uma década e uma mãe insatisfeita e revoltada, Ann, a protagonista do filme, parece feliz na sua vida simples ao lado do marido (que constrói piscinas) e das duas filhas pequenas, com quem partilha momentos de delicadeza e ternura quando as três resolvem fazer de conta que estão em alto-mar, que a cama cheia de edredons é mesmo um navio que pode ser derrubado por ondas gigantes... 
 
Quando recebe o tal diagnóstico, Ann resolve não contar nada para ninguém, pois não quer gerar qualquer sofrimento às pessoas do seu convívio. Resolve enfrentar, sozinha, as vicissitudes de um momento extremamente delicado, de uma espera urgente, sensível, intensa e angustiante pela “indesejada das gentes”, como versejou Manuel Bandeira.
De forma absolutamente inusitada, ela toma posse de um caderninho onde vai anotar as coisas que deseja fazer em seu breve tempo de vida. “Visitar meu pai na cadeia”; “Fazer algo diferente no cabelo”; “Dizer às minhas filhas que eu as amo todos os dias”; “Fazer outro homem se apaixonar por mim”, são algumas das coisas que ela anota em sua lista de desejos (prioridades?), como uma espécie de compensação pela vida que está deixando. E, numa demonstração de profunda grandeza, altruísmo e desapego, ela deseja ainda que possa encontrar uma mulher para ficar com seu marido (uma boa mãe para suas filhas), um dos desejos que talvez justifiquem o tema dessa história tão comovente e ao mesmo tempo repleta de muita força e coragem.
 
Mesmo não partilhando com ninguém, afora o seu médico, e confidente de uma importante decisão, os sofrimentos físicos e psicológicos que a doença lhe causa, ela ainda encontra outra maneira de explicar o que aconteceu e reforçar todo o amor que sente por sua família. Com a sensibilidade à flor da pele, e nas poucas oportunidades que tem de permanecer sozinha, Ann resolve deixar gravadas algumas fitas com mensagens para o marido, as filhas e a mãe. Para as meninas, deixa mensagens para todos os seus aniversários, até que completem 18 anos e possam entender que, mesmo não estando presente, o seu amor está em cada palavra sua ou gesto de carinho. Para o marido, ela canta (quase sussurrando) uma das canções que marcou o primeiro encontro dos dois. Uma maneira simples de demonstrar todo o amor que faz dela uma pessoa tão forte e ao mesmo tempo tão sensível e humana a ponto de não querer culpar quem quer que seja pelo sofrimento que lhe foi imposto de maneira tão cruel. 
 
Essa atitude me fez lembrar a história de Fernando, irmão de Drauzio Varella, acometido por um câncer de pulmão, aos 45 anos. A certa altura, Fernando, que também era médico, mesmo sabendo que a doença já estava disseminada, afirmou que a vida não fora tão cruel porque a doença não chegara de repente, abreviando seus dias com um infarto fulminante, por exemplo, sem lhe permitir “uma oportunidade de reflexão”. E com admirável serenidade, afirma: “[...] tive tempo de organizar minhas coisas e preparar meu espírito para o que estava por vir”. “Lógico que lamento me retirar, mas fui feliz no tempo em que tive para viver”, diz ele ao irmão, extraindo da adversidade uma mensagem de luz. 
 
 
 

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