Théo Alves

13/09/2020 00h02
 
A última crônica do confinamento 
 
 
Chegamos a seis meses de confinamento devido à Covid 19. Em março deste ano, ninguém poderia imaginar que seria necessário tanto tempo em quarentena. É muito mais do que vimos em outros países, que viveram algumas semanas na incerteza que nos toma há meio ano.
 
A irresponsabilidade de nossos governantes e o egoísmo de nosso povo, somados a tantos outros fatores que muitas vezes puseram a pandemia em segundo plano, fizeram com que perdêssemos de vista a possibilidade de mitigarmos tamanho sofrimento de forma mais efetiva e cuidadosa. 
 
Há mais de 127 mil brasileiros – sem levar em conta a imensa subnotificação desde os primeiros dias da doença – mortos e inúmeras famílias devastadas. O SUS, sempre tão criticado, tem sido o pilar que nos poupou de uma catástrofe ainda maior. Nossa economia, que já vinha sendo pilhada pela péssima gestão de um governo federal brutalizado e pouco voltado para o bem estar social, beira o colapso e foi usada como justificativa para uma dicotomia que não pode ser honesta: a escolha entre salvar a economia ou as vidas. A política brasileira tornou-se um terreno ainda mais grotesco do que já conhecíamos em que vidas são barganhadas ou desprezadas por uma guerra de poderes. Esse é o nosso cenário.
 
Durante estes seis meses escrevi frequentemente crônicas cujo principal assunto era a pandemia e seus desdobramentos, desde a postura do presidente até o sofrimento pela perda de cada uma das vidas que foram tomadas por essa doença. Escrevi muitas vezes sobre o confinamento, sobre as possibilidades e realidades que esta experiência nos trouxe ou sobre como encaramos o mundo que construímos para antes e depois deste momento. 
 
Ainda que nossas taxas de contágio e números de óbitos sigam absurdamente altos, apesar das tentativas de maquiarem esses números devido à proximidade das eleições municipais, parece que resolvemos abandonar de vez o confinamento. Não são mais apenas os negacionistas ou os conservadores que se recusam a permanecer em casa, única maneira que ainda temos para amenizar os efeitos do contágio. Pessoas de todas as orientações políticas resolveram abandonar a quarentena como se o Corona vírus já não existisse mais entre nós.
 
As praias por todo o país estão lotadas, as estradas engarrafadas, os bares deixaram para trás os cuidados profiláticos e a preocupação com as aglomerações, assim como o comércio, os restaurantes, academias, feiras e tudo mais. 
 
Até mesmo o futebol, com seus times carregados de jogadores contaminados, tem contribuído para essa sensação de fim do horror. É muito comum, por exemplo, ouvir comentaristas se referirem às equipes como “antes e depois da pandemia”. Há alguns que ainda percebem o ato falho e tentam inutilmente corrigi-lo, mas não são todos.
 
Algumas semanas atrás, o jornalista Tácito Costa pôs fim ao seu “Diário da Covid 19”, em que escreveu sobre suas aventuras em nome da sobrevivência durante este período. De suas conquistas na cozinha às saídas obrigatórias para a sobrevivência, Tácito compôs uma companhia compartilhada para tempos tão difíceis. Perdi as contas de quantas vezes me identifiquei com suas crônicas sempre tão bem escritas e convidativas. Obviamente Tácito sabe que a pandemia não acabou, mas é difícil continuar escrevendo sobre algo que cada vez mais parece uma realidade improvável, ainda que bata diariamente em nossas caras.
 
Seguirei meu confinamento até ser seguro sair, mas diante de tantos motivos, acabei por me decidir a não escrever mais sobre a Covid 19, a menos que venham a surgir motivos compulsórios. Se não, deixe estar. Porque me sinto um idiota escrevendo sobre o que quase ninguém mais percebe ou muitos fazem questão de não enxergar. No momento em que quase todo mundo abandonou a quarentena, me sinto como no filme Cidadão Kane, a repetir a palavra “Rosebud” no leito de morte sem que ninguém saiba do que se trata. 
 
 

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