Andreia Braz

15/08/2020 10h16
 
O lirismo de Newton Navarro
 
Não sei dizer exatamente quando surgiu minha admiração por Newton Navarro ou qual o primeiro contato que tive com sua obra literária, mas cada vez que leio um novo texto dele, sou tomada por uma espécie de encantamento. Um alumbramento que se renova a cada leitura e se mistura a outros sentimentos: alegria, paz...  Outro dia, por exemplo, fiquei tão distraída lendo uns contos dele no ônibus que acabei indo parar em outro bairro porque esqueci de descer no lugar certo. Estava lendo a primeira obra de Navarro com a qual tive contato: Os mortos são estrangeiros (AS Livros, 2003), um livrinho de bolso meio difícil de encontrar porque a editora não existe mais. Aliás, estou tentando completar essa coleção de autores potiguares nos quais estão incluídos Tarcísio Gurgel, Eulício Farias de Lacerda, Clotilde Tavares, entre outros. 
 
As primeiras crônicas que li de Newton Navarro provocaram o mesmo fascínio experimentado com a leitura dos seus contos. Sua forma de escrever é “duma suavidade impregnante”, como disse Mário de Andrade em referência ao poeta Ferreira Itajubá. Sua escrita me fez lembrar em alguma medida o estilo de Rubem Braga e Vinicius de Moraes, dois mestres na arte de falar do cotidiano com delicadeza e poesia; o que me aproximou ainda mais do multiartista potiguar que também foi mestre na arte do desenho e da pintura. Por falar nisso, há uma exposição de pinturas Newton Navarro no Instituto Histórico e Geográfico do RN, o que seria tema para outra crônica. A exposição é intitulada “Newton Navarro: o movimento do traço perfeito”. 
 
Voltando ao meu encantamento perante a crônica de Newton Navarro. Foi também essa a sensação que tive ao ler Berilo Wanderley, contemporâneo e grande amigo de Navarro. Aliás, ambos publicavam suas crônicas na mesma página na Tribuna do Norte, na qual Berilo mantinha uma coluna intitulada Revista da Cidade.
 
Difícil dizer o que mais gosto em Newton Navarro, mas certamente o seu lirismo e seu jeito simples de dizer as coisas talvez sejam o que mais me encanta nele. É incrível a sua capacidade de falar das coisas mais simples com uma grandeza desconcertante. Foi essa a sensação que tive outro dia, ao ler uma crônica intitulada “Neco”, a qual está enfeixada no livro Sete poemas quase inéditos & outras crônicas não selecionadas (EDUFRN, 2013). Neco era um homem simples, um trabalhador rural cuja vida foi devastada pelo álcool, mas nas palavras do cronista parece alcançar uma dimensão mágica... Com uma linguagem poética, o autor traça um breve panorama biográfico do personagem: narra suas conquistas como trabalhador, enaltece suas virtudes de contador de causos (relembrando as conversas no alpendre), para depois falar de seu declínio, mas não de uma forma comum. Ao narrar a notícia de sua morte, Navarro faz um questionamento filosófico e ao mesmo tempo reforça a grandeza de Neco: “Que sei eu; que sabemos de sua desdita? Escrevo no entanto esta nota repassada da mais funda ternura porque bem o conheci e sabia que, por detrás do homem transtornado que estava nestes últimos anos, havia um grande e bravo coração sertanejo, agora a campear o gado de sombras pelos ermos tristes da fazenda Bela Vista”.
 
Difícil elencar as melhores crônicas desse livro, organizado por Paulo de Tarso Correia de Melo e Gustavo Sobral, uma obra-prima da crônica potiguar, mas gostaria de comentar dois ou três textos que contêm a essência de Newton Navarro, sua sensibilidade e sua comoção perante as coisas mais simples, e certamente nos permitem conhecer melhor esse homem cujo legado artístico, humano e intelectual talvez ainda não seja devidamente reconhecido em nosso estado. 
 
Na crônica “Elpídio Soares Bilro”, traça um perfil emotivo de seu pai e permite ao leitor mergulhar em sua infância e sentir a profundeza dessa relação cheia de afeto e cumplicidade. Ao recordar os quatro anos de sua partida, o filho, comovido, diz: “E lembrar-lhe a vida toda de sacrifício e luta. O exemplo dos dias de cansaço e mágoa. As horas lentas para que a família vivesse uma paz e as alegrias da casa voltassem sempre à sua chegada com a braçada dos presentes, a alegria no rosto envelhecido, a palavra de carinho, perfeita, real, sonora”. Saudoso, o artista lembra a reação do pai perante “os primeiros desenhos descobertos por ele no fundo da gaveta. Sua alegria que em breve se desfazia em pranto [...]”. Encerra seu preito de saudade com a certeza de que “o amor continua a fazer com que a vida se perpetue em lembrança”.
 
Na crônica “A alma do grande sertão”, o autor nos transporta para o universo simples do homem sertanejo e nos ensina uma importante lição: “Conquistar e conseguir a paz das coisas. E, mais do que tudo, merecer essa dádiva de Deus, como um prêmio pelos muitos anos de trabalho, sulcando-a, com arados de sacrifício”. Ao transmitir a felicidade do homem perante a mesa farta, Navarro apresenta ao leitor um pouco da culinária típica sertaneja: “Feijão-verde, carne de sol, farofa grossa, coalhada e um cafezinho”. Confesso que fiquei com água na boca...
 
E o que dizer perante toda a delicadeza contida nas palavras de Newton Navarro? O que dizer de um escritor que tão bem conhecia a alma humana? Talvez um de seus leitores o tenha definido da forma mais perfeita: “O senhor tem alma para sentir e descrever as coisas da vida. [...] Para quem escreve crônicas precisa ver longe e ter um coração puro e uma inteligência profunda”. Foi o que disse Manoel Fernandes de Negreiros, em carta ao jornal, para comentar a crônica intitulada “Neco”, a qual também foi mencionada aqui. 
Parafraseando Mário de Andrade, sobre a descoberta encantada da poesia de Ferreira Itajubá, quando de sua passagem pelo RN, eu diria: o Brasil precisa conhecer melhor Newton Navarro.
 

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