Daniel Costa

08/08/2020 17h18
 
HOMEM PÓS-MODERNO
 
 
Hoje eu acordei com dois quilos de pedra na cabeça. A ressaca devora minhas entranhas. Mas suporto tudo com alguns comprimidos e certa resignação, quando lembro que as cervejas emborcadas na noite anterior foram motivadas por uma causa digna. A esposa dele arrumou as trouxas e tirou o time de campo. Era preciso dar uma força. E no caso do meu amigo, dar uma força significa enxugar muitos copos. Enten-dam-me bem. Existem pessoas que são fechadas como cavernas submarinas, e emergem à superfície das emoções com dificuldade. Não faço críticas. A vida é quase sempre insondável. E ninguém sabe a espessura dos vidros que os outros tiveram que quebrar para ainda estar por aqui, sem marcas de gilete nos braços. 
 
O álcool é uma ferramenta socializante, fio que conduz eletricidade a uma existência sem sentido. Não tem problema se alguém achar que isso é apologia à bebida. Depois de algumas bocks, a gente se entende melhor. As conversas mais duras surgem e desaparecem sem que seja necessário debulhar mais do que dois dedos de lágrimas. Nada suficiente para acabar com o bom humor que envolve uma noite promissora.
 
Foi então uma espécie de divã etílico. Existiram tristeza e reflexão. Mas nós também nos divertimos pra valer ao relembrar das velhas histórias, como no dia em que o deixei sem carona, depois da raiva que ele me fez passar durante um show, acho que do Titãs. A penalidade foi a de ter que voltar a pé, de Pirangi até Ponta Negra. No caminho, uma vizinha que passava de carro o viu a perambular pelo acostamento da Rota do Sol, e resolveu perguntar o que ele estava fazendo ali, às 4 da madrugada. Ele ficou com tanta vergonha que disse que havia acordando com uma puta insônia e o jeito era dar uma caminhada básica de 20 quilômetros! 
 
A gente também se babou de rir ao relembrar do dia em que um colega, que morava na Cabo de São Roque, começou a fazer arte marcial e chegou em casa todo empolgado. Daí ele resolveu improvisar a demonstração de uma chave de braço e cha-mou a mãe pra servir de cobaia. Resultado: quebrou a clavícula da coroa. 
 
Mas a verdade é que, na maior parte do tempo eu fiquei calado, com um copo na mão, esperando  pelo  seu próximo  gole, que  significava a retomada  de algum causo espetaculoso ou de alguma nova lição. Afora os lances amorosos, ele sempre soube de tudo. Por isso, quando estou com ele preciso tomar notas mentais, ouvir atentamente sobre como destrinchar as pedras e percorrer os caminhos do labirinto da existência. É  difícil constatar que  nunca fui capaz de compreender nada da vida e nem tampouco de como destravar os seus cadeados. E  é aí  que o mundo desaba. Exatamente quando  o cowboy  entende que  a sua estrela  de xerife jamais  significou  poder. É quando  a criança  finalmente percebe que  a sua arma era apenas  um brinquedinho  de espoleta. Não sei como ele consegue. Mas eu não consigo. 
 
Depois da décima latinha foi engraçado vê-lo ensaiar uma dancinha tipo Jon Heder em Napoleon Dynamite. E, no final da noite, acho que ficou entendido que não é de todo mal continuar seguindo a estrada, com suas flores e seus espinhos, até o dia em que não será mais preciso de um amigo e de um turbilhão de latinhas para amai-nar as dores causadas por um solene pé na bunda. 
 

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