Bia Crispim

31/07/2020 08h02
 
Fé, festa e devoção - As travestis também têm esse direito
 
 
Sou seridoense, acredito que todos saibam disso, principalmente pela última postagem que fiz nesta coluna. Mas não é sobre de onde venho que falarei novamente, e sim sobre da fé que trouxe de lá. Nasci em Currais Novos, no seio de uma família católica e desde sempre vivenciei a fé e a devoção de meus pais por Deus, por Jesus e por Sant’Ana, padroeira de nossa cidade. 
 
Esse ano, assim como em outros, eu participei de algumas atividades dessa grande festa seridoense, que não é só comemorada em Currais, mas também em Caicó e em Santana do Matos. E acompanhando remotamente às festividades me veio em mente uma questão que há muito me incomoda: o fato de as igrejas, de uma forma geral, excluírem de seus “rebanhos”, de suas assembleias, a população LGBTQIA+, sobretudo as travestis, como se por pertencerem a essa comunidade, e por serem quem são não sejam legitimadas a exercer o direito a sua fé, seja a partir de que crenças tenham. 
 
(A não ser que busquem religiões de matrizes africanas, que sempre as acolheram).
 
Buscando na internet notícias sobre os eventos on-line alusivas à Festa de Sant’Ana, me deparei com uma surpreendente homilia (gravada em 2017) do bispo da diocese de Caicó, Dom Antônio Carlos Cruz Santos, em que ele afirmava: “se não é escolha, se não é doença, na perspectiva da fé só pode ser um dom, é dado por Deus. Dom é isso. É dado por Deus, não tem jeito. Mas talvez os nossos preconceitos não consigam perceber o dom de Deus.”
 
Logicamente, o discurso do bispo levantou polêmicas. O que me suscitou buscar notícias daquela época que falassem sobre a repercussão dessas palavras tão sabiamente postas. É quando me deparo com um artigo da revista Carta Capital de 16 de agosto daquele ano, em que dizia: “De fato, a cegueira do preconceito não tardou em se manifestar em nome de uma pretensa fé por meio de ofensas e palavras de ódio contra o que consideram pecado, contra o bispo e todas as pessoas que comungam de suas ideias.
Um ódio contra pessoas que simplesmente defendem o direito de existir, de amar e receber amor, de ter sua dignidade respeitada. Em nome da “fé”, constroem o “inferno” que desejam aos que não se encaixam em sua moral excludente.”
 
E é esse ódio excludente em certas igrejas que impedem que travestis, gays, lésbicas... exerçam suas crenças e práticas religiosas. A fala do bispo, diante de todo esse sistema opressor, de toda essa visão de que não temos direito de crermos e podermos ser quem somos sem a culpa do pecado, da condenação ao inferno, aparece como um tapa na cara daqueles que se julgando “cristãos”, filhos de um Deus criador, esquecem-se de amar ao próximo. 
 
Esquecem de que, como seres humanos, acreditamos, tememos, cultuamos, adoramos, rezamos, oramos, glorificamos, pedimos, agradecemos a Deus, à Oxum, a Sant’Ana, a Nanã, a São Francisco, a Iansã, a Jesus, a Ganesha, a São Sebastião, à Pomba Gira, ao Preto Velho, a Alá, a Jeová, a Shiva, a Nossa Senhora dos Remédios, aos bons espíritos... 
 
Cremos, e a fé que nos emana e a religião que nos conforta deve ser não um espaço de exclusão, mas sim um lugar de acolhimento, de amor, e de reconhecimento de que, mesmo diferentes, somos criados a partir de uma mesma matéria, e um mesmo espírito que emana sobre nossas existências. 
 
Amém! Axé! Saravá! Oxalá! Shalom! Namastê! Salaam Aleikum! Viva a San’Ana!
 

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