Andreia Braz

25/07/2020 14h48
 
 
Uma madrugada com Tetê
 
 
 
Quem cultiva a semente do amor
Segue em frente e não se apavora
Se na vida encontrar dissabor
Vai saber esperar a sua hora
 
 Carlinhos Madureira/Xande de Pilares...
 
Imagine uma roda de amigos onde estejam presentes Chico César, Zeca Baleiro, Otto, Anastácia, Simone. Aí acrescente música, vinho, poesia... Foi exatamente assim a madrugada deste sábado, na companhia de Teresa Cristina, a rainha das lives, que tem levado alegria e esperança aos fãs do Brasil e do mundo confinados por causa da pandemia do novo coronavírus. Detalhe: a sambista carioca faz lives todos os dias, e com isso leva arte, poesia, reflexão e alento para milhares de pessoas que estão em isolamento social. 
 
Meu amigo Pedro Neto, sambista dos bons, fã de Nelson Cavaquinho, João Gilberto e Paulinho da Viola, foi quem me falou dessas lives de Teresa Cristina, dizendo que eu precisava assisti-las e tal. Confesso que demorei para seguir o conselho do poeta, pois costumo dormir antes das 23h e as lives dela costumam terminar bem tarde. Essa madrugada no entanto, foi diferente. Peguei um livro de Clarice Lispector, mas acabei deixando. Decidi dar uma olhada no que estava rolando no Instagram e não pude resistir quando li o título da live: “Viva o Nordeste brasileiro”. Antes da aventura musical dessa madrugada, eu tinha visto um pedaço de duas lives da musa que já encantou o Brasil cantando Cartola, Noel, Paulinho da Viola, entre outros grandes nomes do samba, além de composições autorais. Uma dessas lives foi em homenagem a Tom Jobim. Seu jeito simples e sua espontaneidade me cativaram de imediato.
 
Confesso que às vezes não tenho muita paciência para acompanhar tantas lives, e até agora só havia assistido a uma live completa de Adriana Calcanhoto, mas decidi me aventurar no universo de Teresa Cristina e, para minha surpresa, como disse, ela estava homenageando justamente a música nordestina. Não pude resistir e fiquei até o final. Quando o assunto é Nordeste, meu coração dispara... Entrei para o time dos “Cristiners”, como são conhecidos os fãs da cantora. É um caminho sem volta.
A sensação que tive era a de estar com Teresa Cristina e seus ilustres convidados no sofá de casa, onde, confortavelmente, eu poderia me deleitar com tantas pérolas do cancioneiro nordestino e me deixar levar pela emoção, alimentando aquele orgulho que toma conta da gente quando estamos diante de quem admiramos. E não é pra menos: entraram nessa live Chico César, Otto, Zeca Baleiro, Simone e Anastácia, “a rainha do forró”, que compôs mais de 200 músicas com Dominguinhos e continua encantando o público do alto dos seus 80 anos. Com muita desenvoltura, ela cantou, relembrou histórias da juventude e emocionou a anfitriã. Como disse Teresa Cristina, em entrevista a Veja, as lives viraram “uma roda de samba virtual. Os fãs mandam cerveja, salgadinhos e bilhetes com músicas e versos para minha casa”. Deu até vontade de tomar um vinho (ou uma cerveja) em homenagem àquela noite, e à nossa música.
 
E foi essa sensação de familiaridade que Chico César me passou quando deu uma aula de Nordeste, pontuando a relevância da nossa região para a construção do Brasil e se dizendo contra o que ele chamou de “exercício poético/provocação estética”, aquele desejo de dividir o Nordeste, expresso em uma canção icônica composta por Braulio Tavares e Ivanildo Vilanova que ganhou força na voz de Elba Ramalho. Chico César também lembrou a importância de Luiz Gonzaga e falou de algumas cidades importantes, além das capitais nordestinas, No Rio Grande do Norte, citou Caicó e Mossoró, em Pernambuco, Caruaru. Outras canções que marcaram época também foram revisitadas na voz potente e dramática de Teresa Cristina: “Mulher Nova, Bonita e Carinhosa” (composição de Otacílio Batista e Zé Ramalho), “Pequenino cão” e “Zanzibar” (Fausto Nilo) etc.
Outro ponto alto da noite foi quando ela cantou uma música gravada por Angela Ro Ro. A canção faz parte de um disco produzido por Zeca Baleiro em que ele musicou dez poemas de Hilda Hilst, “Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé – De Ariana para Dionísio”. Maria Bethânia, Angela Ro Ro e Zélia Duncan são algumas das artistas convidadas. Teresa cantou a “Canção V”, interpretada no disco por Ângela Ro Ro. Eis uns versos da canção: “A mim me importa, Dionísio / O que dizes deitado, ao meu ouvido / E o que tu dizes / nem pode ser cantado / Porque é palavra de luta e despudor / E no meu verso se faria injúria / E no meu quarto se faz verbo de amor”. Detalhe: o próprio Zeca Baleiro ficou surpreso com o fato de Teresa Cristina conhecer aquele disco. Mesmo estando preparado para dormir, aceitou o convite, bateu papo, cantou forró...
 
Além do talento inquestionável e do compromisso com a arte, Teresa Cristina cativa com sua simplicidade, alegria e espontaneidade. Imaginem que no meio da live ela passa batom, arruma os cílios postiços... Adoro quando ela diz: “peraí, gente, vou botar um filtro aqui. Tá puxado hoje”. E quando ela saboreia os famosos pastéis da Tetê! É de dá água na boca. Também gosto quando ela cai na gargalhada. 
 
Apesar de todo esse sucesso nas redes sociais, sabemos que o momento é extremamente desafiador para os artistas, e para os artistas negros, nem se fala. Há mais de duas décadas no mercado, ela ganhou popularidade agora. Mas isso ainda não mudou muita coisa na prática. Até agora, só fez duas lives patrocinadas. Outro dia foi indicada para fazer campanha de uma marca de cosmésticos, mas tem certeza de que a cor da sua pele a fez ser descartada. É por essas e outras que suas lives têm se tornado cada vez mais necessárias como espaço de discussão e fortalecimento das minorias, além de um encontro diário com o melhor da música brasileira. É, também, contra o racismo, a homofobia, o machismo e outras formas de opressão que Teresa Cristina vem lutando quando decide dedicar três horas diárias para levar música e bons papos para sua plateia virtual... Isso sem falar nas horas dedicadas à pesquisa e preparação da lives.
 
Agradeço aos deuses do samba esse encontro, e ao meu amigo Pedro Neto pela indicação da live. Estava um pouco desanimada esses dias com o cenário incerto em que vivemos (medo de adoecer, medo de perder amigos e familiares, mercado de trabalho), mas essa madrugada com Tetê me fez repensar muita coisa e seguir acreditando em dias melhores, apesar dos pesares. Afinal, “o sol há de brilhar mais uma vez”, como vaticinou Nelson Cavaquinho. Vou me apegar a esses versos e lembrar, também, de uma certa canção de Lenine: “Enquanto o tempo / Acelera e pede pressa / Eu me recuso, faço hora / Vou na valsa / A vida é tão rara”. Também vou continuar sonhando com uma boa roda de samba no Beco da Lama, como aquelas do projeto “Quinta que te quero samba”, ou mesmo aquela organizada por Andiara Freitas (Clube do Samba), em dezembro do ano passado, em homenagem ao Dia Nacional do Samba.
 

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